segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Sargento Getúlio, a morte e a nossa fé

Há uns dias visitei meus excertos de livros que valeram o esforço da anotação. Nesta visita pelos meus rabiscos encontrei os referentes ao livro “Sargento Getúlio”, de João Ubaldo Ribeiro. O livro de Ubaldo se dá num monólogo, onde Getúlio, Sargento da polícia militar de Sergipe, um jagunço que já matara vinte, recebe ordens de um político a quem tem fidelidade, de prender um adversário do interior e levá-lo para a Capital. Neste meio tempo, esta ordem é desfeita, mas por fidelidade, o jagunço insiste em cumprir o mandato, sendo assassinado ao final de sua missão. Neste período Getúlio recorda suas aventuras diversas, falando, num constante monólogo, de sua percepção acerca de vários temas, inclusive a morte, sobre a qual queremos nos debruçar.

Citamos alguns trechos do livro, a que fazemos referência, sobre a morte:

1. Quando o homem resiste da morte não tem visagem mais assombrada [...] tem quem diga que a morte é calma. Só se for depois, porque na hora o sofrente arregala as vistas e se segura no que achar, como quem se segura na vida. E se revira e range os dentes e levanta a cabeça e puxa o ar e busca conversa e espia os lados e fica retado porque todo mundo não está indo com ele e arroxeia os beiços e faz que senta e se esfrega em tudo e se baba e se bate dos lados e olha duro para as pessoas e dá gofadas e fica com pena dele mesmo e estica as pernas e se treme todo e faz cara de medo e se destorce e faz barulhos e se bufa e se borra e grita e pensa naquilo que nunca fez e pede a Deus nas alturas e chuta o vento e estica a roupa e incha o peito e no fim faz uma força e revira os olhos de modo medonho e dá um arranque para cima e vai embora no seu caminho, que o dia de nós todos vem [...] Mas ninguém gosta de ir, isso é conversa de padre (p.23-24);

2. Morrer é como que dormir e dormindo é quando a gente termina as consumições, por isso é que a gente sempre quer dormir. Só que dormir pode dar sonhos e aí fica tudo no mesmo. Por isso é que é melhor morrer, porque não tem sonhos, quando a gente solta a alma e tudo finda. Porque a vida é comprida demais e tem desastres [...] Quem é que agüenta esse peso, nessa vida que só dá suor e briga? Quem agüenta é quem tem medo da morte, porque de lá nenhum viajante voltou e isso é o que enfraquece a vontade de morrer. E aí a gente vai suportando as coisas ruins, só para não experimentar outras, que a gente não conhece ainda (p.99-100).

3. Estou sentindo, eu disse, essa vida é uma bosta. Puxei ar: quem está vivo está morto, a verdade é essa (p.137);

4. O pior que pode me acontecer é eu morrer e isso não é o pior. [...] Pior é não ser ninguém (p.138);

5. “A coisa que mais tem é morte, e o mais certo que tem. Desque nasce começa a morrer. Tárcio dizia: eu só faço os buracos, quem mata é Deus” (p.37);

6. O seres humanos são as galinhas de Deus, porque Quando menos a gente espera, Deus pega um e torce o pescoço e não tem chororô (p.11);

Teçamos uns breves comentários a partir das expressões de Getúlio, de Ubaldo Ribeiro:

1. “E vai embora em seu caminho, que o dia de nós todos vem... mas ninguém gosta de ir”. Pode-se dizer que há uma crença de que se vai para algum lugar depois da morte, posto está que se fala de um “caminho” e este só existe para direcionar a um lugar.

2. Dormindo se esquece as “consumições”, ou seja, desgostos, apreensões, inquietudes. No entanto, essas “consumições” podem retornar em sonhos, certamente pesadelos para quem já tinha matado mais de vinte. Então, melhor do que sonhar é morrer, o que impossibilita qualquer aflição. Mas melhor mesmo do que se arriscar no desconhecido da morte, é viver enfrentando os “desastres” da vida. Parece que há a crença em algo depois da morte, mas, no entanto, não tem segurança no que será. Diante do medo da morte há também o medo de não ser ninguém enquanto em vida, assim, “pior do que morrer é não ser ninguém”.

3. Desde que se nasce já se começa a morrer. Essa afirmação mostra um pensamento mais negativo que positivo da vida, embora se possa chamar de uma constatação óbvia. Getúlio era matador, mas afirma que é Deus quem “torce o pescoço”, tira a vida de quem ele atira. O poder de tirar a vida é de Deus, pensa o jagunço, sem perceber que a isso se junta sua ação violar tal vida.

Nas afirmações do personagem de Ubaldo, encontramos a síntese de um pensamento bem generalizado sobre a vida, a morte e a realidade pós-morte: viver parece ser mais sofrimento do que alegria. Acredita-se numa realidade positiva após a morte, porém, é um acreditar que muitas vezes é questionado; há uma compreensão de que o dia da morte de todo ser humano chegará, no entanto, há uma não aceitação da morte. Talvez por isso se possa explicar a imensa quantidade de orações para os mortos nas missas; se possa explicar a presença massiva nas missas de sexta-feira santa, o que não ocorre em domingos de Páscoa.

Bem, me empolguei. A única intenção destas divagações era comentar o fato de que na Igreja lembramos demasiadamente os mortos, e pouco falamos dos vivos, pouco festejamos os nascidos, os que celebram bodas, os que estão felizes.... E quero dar o exemplo dos meus primeiros sete minutos da última missa que participei em Estrela: todos lembrando mortos e o leitor cuspia as palavras rapidamente, em razão das tantas intenções. Até parece que na fé de nossos crentes, se os nomes dos falecidos não forem citados, Deus não os identificará. Certamente porque Ele é desatento, só pode! Não há outra explicação! Bom, não acredito nisso! O problema está na forma de evangelização que, ao que parece, deu pouca ênfase à vida, à importância da comunhão entre os vivos, à importância de se entre-ajudarem para terem uma vida saudável e digna. A realidade do pós-morte não pode ser mais importante que a realidade da vida dos filhos e filhas de Deus, pois é aqui que o Reino de Deus se faz constantemente no já e ainda não de cada dia.

BIBLIOGRAFIA: RIBEIRO, João Ubaldo. Sargento Getúlio. São Paulo: Folha de São Paulo, 2003.

José Heber de Souza Aguiar, Estrela, 09/08/2010

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Uma história de dor

Conheci uma senhora. Sessenta e dois anos. Parecia ter setenta e cinco, pelo rosto, expressão de sofrimento, dor. Parecia ter vinte, pela ingenuidade, imaturidade e, também, dor. Não a dor de uma mulher vivida que tivera um genitor que nunca cuidou dela, abandonando-a com cinco anos. Um genitor covarde que tentara abusá-la sexualmente. Não pelo fato de ter sido adotada por uma família que não podia ter filhos. Não por criar um filho que vive tentando se matar bêbado ao volante, dizendo que não tem mãe. Não por isso. Por isso, não! A dor dessa mulher sofrida é a dor da morte!

A primeira coisa que essa mulher me disse foi que precisava de ajuda para ajudar. Isso mesmo! Ela, que tanto carece de ajuda, não queria ajuda para si. Queria ajuda para o filho. Um pobre filho, falando de condições financeiras. Um rapaz pobre de vinte e cinco anos que não aceita ser pobre. Quer um carro, precisa de um carro, não vai viver sem um carro, mas vai morrer com um carro, concluí hoje... Já se acidentou três vezes embriagado ao volante. Ele só a terá por mãe quando conseguir um carro...

Conheci uma senhora, hoje. Uma senhora triste, como muitas outras senhoras tristes, uma senhora sofredora como muitas outras senhoras sofredoras. Uma senhora com a cara da dor. A dor tem a cara dela.

Seu filho já se empregara duas vezes, contou-me ela, mas pediu demissão para ter dinheiro para comprar o sonhado carro, o carro que bateu e que foi guinchado e está preso até hoje. Foi sempre um funcionário promissor, dedicado, responsável, contou-me também ela, mas seu sonho é seu carro. E só!

Fiz hoje o que não fazia há tempos. Parei uma hora e meia para ouvir as dores de uma pessoa. Nunca me senti tão bem por ouvir essa senhora. Ela falou tanto, tudo, contou o que lhe machucava, suas dores, tristezas, frustrações. E, ao final, levantou-se mais leve, flutuava... Consegui convencê-la a ir a um psicólogo, convenci-a a convencer o filho a também ir a um psicólogo. Ela foi feliz por algum tempo... E o psicólogo que os ajude a se ajudarem... E ai dele se não o fizer!

Quantos anos ainda pode viver uma pessoa de sessenta e dois anos que sofreu toda a vida? Temo a resposta, temo pensar que essa senhora possa sofrer tanto mais que o  já sofrido. Isso corta-me a alma. Sem pai, sem mãe, sem ajuda, quase sem filho... Bom, mas ainda tem Deus. E em Deus ela crê muito, Deus é tudo para ela, é em Deus que ela põe todas as suas forças. Para variar, sempre fica tudo para Deus resolver. Que assim, seja! Mas que Deus não demore mais sessenta e dois anos. Deus, por favor, dê a primeira ficha de atendimento para essa senhora, porque esse caso é para ontem!

José Heber de Souza Aguiar, Estrela, 04/08/2010

terça-feira, 3 de agosto de 2010

In Vino Veritas

Ainda ontem disse a um amigo que para se tomar uma decisão importante pela seriedade é preciso fazê-lo num dia após tomar um porre de vinho. Meu amigo, no entanto, retrucou afirmando que precisaria da razão para poder tomar uma decisão séria. Já havíamos tomado uns bons goles de vinho e falado sobre o que é racional. Não me aquietei com a resposta dele e procurei afirmar automaticamente que após o tal porre se está mais racional que em outros momentos, pois é quando se pode tomar uma decisão sem se valer tanto pelo que não é racional, pelos desejos, instintos. Não queria dizer que para pensar algo sério seria necessário o dia após o vinho. Com minha afirmação queria eu dizer que para assinar uma decisão já pensada e refletida, mas a qual não se teve coragem de assinar, de fazer acontecer, seria importante fazê-lo depois de um porre.

Tomamos ontem um bom vinho! E hoje é domingo. E domingo não se precisa acordar cedo. Eu não acordo cedo, geralmente. Sempre vou à missa antes do meio dia. Hoje não fui à missa antes do meio dia. Minha cabeça doía. Quase explodia. Literalmente eu não tinha condições de pensar nada que fosse sério. Decidir por algo já pensado eu conseguiria, sim. Minha tese estava confirmada.

Hoje eu estava cético. Há muito tempo não me pegava tão cético como hoje. Pensei sobre quase todas as coisas do mundo! Não eram coisas sérias, então pude pensá-las. Somente hoje fui político, fui pai, fui amante, fui monge, fui ateu, fui cangaceiro, fui poeta, fui filósofo, fui um lixo. De tudo que fui continuei sendo o mesmo de todo dia: um nada! Nunca estive tão niilista como hoje.

Hoje eu não estava bem, talvez por isso mesmo fui tantas coisas. Queria ser mais do que sou, para me sentir melhor. Não estava mal por causa do vinho, confesso! Tenho andado cansado, estressado!

Tenho estado angustiado com a vida humana, com o sentido de viver para tanta gente. Trabalho com pessoas e vejo-as diariamente brigando por coisas fúteis, fingindo ser o que não são para serem aceitas nesse mundo de falsas faces.

Agora já são vinte e três horas. Depois que eu escrever essas angústias para não esquecer que um dia as tive, vou deitar e dormir. Espero amanhã acordar inteiro. Infelizmente espero estar menos cético. Preciso acordar religioso, mais esperançoso, mais humanista! E quando o estresse me derrubar outra vez, voltarei a tomar uns goles de vinho para que eu possa ver a possibilidade de ser outras coisas outra vez. Quando o cansaço me vencer vou viajar em busca de uma nova verdade. Ainda que eu não a encontre vai valer a busca, o percurso, o caminho. Se é a absoluta verdade, não sei, mas é a verdade que só posso encontrar após o vinho!

José Heber de Souza Aguiar

Canoas-RS, 04/10/2009

José

(IMAGEM: José Heber de Souza Aguiar, 03/08/2010)

São sete horas da manhã. Minha casa é fria. Meu quarto é quente. Pus-me cedo de guarda para melhor viver. Precisamos de horizontes, mas viver na horizontal não é lá a melhor coisa. É tão cedo para mim que tenho todo o dia para deleitar-me em livros, teses, idéias malucas de malucos que parecem nunca ter acordado para a vida. Estou de pé, desperto, mas é como se ainda estivesse sob os meus trinta quilos de cobertores (sim, há certo exagero nesse número!), é como se não tivesse acordado. Afinal, não tenho a Maria e o João (se os tivesse não teriam esses nomes) para por a banhar, levar à Escola, alimentar, Amar, Cuidar... E tudo o mais de obrigações que tem um pai de família.

São sete horas da manhã e essa cidade gélida não faz jus a seu nome: Estrela é fria, terrivelmente fria. Terei eu acordado sobre uma montanha de neve de algum país nórdico?

São sete horas e eu em meu quarto quente a fitar através da janela de onde grita incansável, um martelo também frio, suspenso por uma mão fria de um corpo esguio, que muito bem se esconde sob tantas roupas e luvas e pitadas sôfregas num cigarro desgastado. Será um Pedro? Um Antônio? Um Francisco? Quem sabe... O certo é que é um pedreiro que não tem a opção de ficar num quarto quente de uma casa fria, pensando sobre a crueldade do frio para dizer que hoje Deus amanheceu preguiçoso. Pensando bem, pode se tratar de um José. Um José da Silva? Há tantos Josés da Silva neste Brasil que é muito possível que esse seja mais um. Se bem que em Estrela não há lá muitos Silvas.

São sete horas de uma manhã gelada e o nosso José não sei de que (será mesmo da Silva?) usa, incansável, seu martelo. De seu rosto escorrem gotas de suor que, gestadas espremidas do calor sofrido de seu corpo, padecem frias... No que pensará esse José? Na Maria? No João que tem brigado na Escola? Na conta de luz com o prazo de pagamento vencido? Na mulher que exige há meses mais um cômodo na casa? Ou pensará em Deus que o ajudará a melhorar de vida, afinal, está trabalhando tão cedo, neste frio de um grau. Se Deus ajuda a quem cedo madruga, haverá de não esquecê-lo... Pobre José, pai da Maria e do João, parece não perceber que suas orações às sete horas de um dia frio, não são ouvidas. Deus tem expediente, José!

São sete horas da manhã e eu num quarto quente de uma casa fria, assistindo ao meu xará José com uma vida quente numa manhã tão fria, pensando em Deus, que bondoso é sempre, mas não acordou cedo hoje e não ligou o climatizador da terra para o lado de cá do globo. Em compensação, tem um José, pedreiro, se queixando do excesso de calor que faz do outro lado... Agüenta aí, meu pai, que não demora muito Deus acorda!
José Heber de Souza Aguiar, Estrela-RS, 03/08/2010