quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Sobre a Loucura da Deseducação

Fernando Pessoa poetizou:

Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?


Se viesse prestigiar a realidade da educação hoje, certamente observaria:

“Que louco esse mundo e tudo o que nele há:
os estudantes vão para a Escola e não estudam
e não se interessam e não aprendem.
Uma coisa aprendem, e só:
a lição que seus pais aplicam
ao professor que “dá” nota baixa aos seus filhos perseguidos:
que louco esse mundo e tudo o que nele há!”


É, Pessoa, o negócio é não cair de bobeira, como professor, por aqui. E, se cair, é melhor se cuidar muito bem!

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Especulações do ser finito sobre o Infinito

A imensidão do infinito não me consola. Vivo embasado em parâmetros e por eles calculo meus passos. O ideal é a constante referência de meu agir. Tenho modelos intocáveis, mas não sei dizer se podem se chamar de divinos ou de coisa que o valha. Procuro a forma perfeita da perfeita fórmula. Procuro o ideal do ideal. Tenho a sede insaciável de buscar a fonte de inspiração do poema mais perfeito. Meus poemas nem poemas são, pois não são perfeitos. Não sou mais que rascunho de um ato criador, pois não me consigo ver como a imagem e semelhança do ideal do ideal, como o reflexo do Supra-sumo, do perfeito. Nem poeira soprada ao infinito me considero, pois existir algo na imensidão de toda a imensidão é pretensão demasiada grande até mesmo para a mais insignificante partícula de nada que sou. Minha cabeça explode a cada dia que passa e percebo que as rugas caminham cada vez mais por meu rosto. Meus cabelos pretos de outrora já perdem espaço para os fios brancos que me dão a cada dia a consciência de que meu tempo passa e que a morte se achega. Não quero a morte! Não quero morrer antes dos noventas anos! Preciso descobrir se valeu a pena abraçar ideologias e acreditar em sonhos. E se eu descobrir que não valeu a pena, que ninguém saiba e que o epitáfio em meu túmulo roto também o esconda. Quero que a frase mais bonita e motivadora esteja lapidada sobre meu corpo carcomido pelos vermes a ganharem vida. E caso eu descubra que não valeu a pena ter sonhos ao menos terei a certeza de que a ilusão do ideal sustenta uma vida, envelhece um corpo, mantém um ser humano firme no propósito da felicidade. E é essa uma nobre causa que deve ser alimentada. Ao fim de tudo temo descobrir que a vida é um enganar-nos constantemente com o divino propósito de chegarmos à velhice, à plenitude da vida, à Morte, sem mistérios a serem desvendados em outras dimensões!

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Pensamentos e ações num dia desses de aniversário longe da terra amada

Acordar pela madrugada, organizar as já menos de vinte e quatro horas para que o tempo pouco dum tal dia esperado - em trezentos e sessentas e todos os que ficam faltando para completar um ano -, possa não atrapalhar a espontaneidade dos acontecimentos. É assim o dia de um concluinte de graduação, aspirante a mestrado e coordenador de turno - ou prefeito de disciplina, como se dizia uma vez.

Acordar às quatro horas e lá se vai um monte de tempo da madruga, preparar o chimarrão, pôr-se a estudar e depois das obrigações matutinas, ligar para a mãe: programa de aniversariante, esse? Sim! E é o meu! Tem sido o meu! Durante muito tempo entendi como obrigação de minha mãe cuidar de mim, me gerar. Ao me afastar dela, para estudar muito distante aquém do além do não se sabe onde e o quê, mudei de compreensão e ligo sempre para minha mãezinha para agradecê-la pela paciência que teve comigo em seu útero, e mais: por ter sido fiel a mim, cuidando para que eu nascesse e me criasse. Minha mãe merece mais que isso, pois poderia ser eu mais um falecido das estatísticas nacionais de aborto, lá da década de oitenta.

Completei hoje cinco lustros natalícios, um quarto de século, como tenho dito para dar impressão de enorme quantidade de tempo. Não passo, e isso já é muito, de um piá não pançudo das terras celestiais do Norte aqui nas bandas esplendorosas do Sul. Um guri amazônida que nem sabe nadar direito, mas que reconhece a cada dia e ano que passa a gratidão do ser mulher de minha mãe; a mulher frágil, mas firme, que me gerou me criou e me amou. Isso é muito, mas minha resposta a esse amor está longe de significar um pouco de tudo que ela fez e continua fazendo por mim. Não esqueci de meu pai nessa conversa! Ele é o esteio de minha mãe, o espírito questionador que a faz pensar e repensar os rumos... O que não é pouco, e o tanto que é... É de se admirar!

José Heber de Souza Aguiar, canoas, 26/06/2009: Meu aniversário de 25 anos

A Celebração que exclui

Retornei há pouco de uma missa numa capela muito bem ornamentada, mesmo com uma estrutura bem precária. Tratava-se de celebração para fechamento de um tríduo, numa comunidade simples, mas com um ambiente agradável: fiéis, altar com flores, imagens de santos, uma cruz, um padre e a Comunhão, Santíssima Redentora, Corpo e Sangue de Cristo. Todos os cristãos que, na missa se encontravam, procuravam alimentar-se da comunhão fraterna, da partilha de vida, do sentimento de inclusão no mistério salvador de Deus. Todos buscavam ser ouvidos por Deus, e ouvidos se sentiam por meio da presença viva da comunidade, do calor cristão, da efervescência da fé nas partilhas de vida. Deus ouve quando os seres humanos, em comunhão, partilham suas situações de vida e suas esperanças.

Na missa de hoje, momento de sentimento de acolhida e inclusão, senti-me traído como o próprio Cristo deve ter se sentido. Um homem de aproximadamente cinquenta anos, mas já velho, cansado, desiludido com a vida e alcoolizado, entrou na Igreja pelo fim da Homilia. Em seus braços, mãos, dedos, pele, rosto, estavam estampados o sofrimento puro. Em sua vida de homem sofredor, morava a exploração, o desrespeito à vida.

Tal senhor, ao entrar, sentou-se e começou a prestar atenção nas brilhantes palavras do padre que em seu ardor missionário, no afã da conversão de seus fiéis falava muito e falava bonito. Não disse antes, mas o tema da celebração era a “Eucaristia como Símbolo de Transformação Social”, o que era perfeito para uma bela celebração, pois ao encontro das necessidades das pessoas que ali estavam e do homem que chegara depois. E o padre falava mal da corrupção, roubo, violência, morte. Todos concordavam e ouviam atentos. Mas tudo parecia tão distante deles. O senhor que chegara depois, disse:

- Mas, padre, isso é coisa do diabo. O senhor tem que falar coisa de Deus. Esses políticos são demônios.

O padre perguntou:

- O que o senhor disse?

E o homem respondeu:

- Eu sou diabólico!

Com essa afirmação, o padre pediu, então, de modo grosseiro para que o homem ficasse calado a fim de que ele pudesse dar prosseguimento à Santa Missa. O senhor insistiu, mas o padre, em atitude de desprezo, sufocou a fala do bêbado.

Chamaram-me atenção as palavras do “bêbado”, quando afirmara que os políticos são demônios. Por que ele teria feito tal afirmação? Para o bêbado eram demônios, sim. Sua situação de explorado e de marginalizado só podia ser culpa do demônio da politicagem que desvia dinheiro, que mata pessoas, que rouba, que corrompe, que mente, que ilude. Mas por que aquele pobre homem disse que era diabólico? Fiquei encucado. Então entendi que ele era diabólico porque assim era visto na missa: entrou sujo, estava bêbado, sentou junto às pessoas, e ainda falava besteiras. Só podia ser diabólico, pois estava incomodando quem ouvia as belíssimas palavras do padre.

Tendo-se calado o homem, a celebração continuou, e passamos à oração eucarística e à consagração. Depois das orações, todos nos colocamos em fila para recebermos o corpo e o sangue de Cristo. O homem ficou sentado em seu lugar por um tempo, depois se levantou e foi ao encontro do Cristo que o esperava de braços abertos. O homem dirigiu-se a Ele, calmamente, sem tocar em ninguém, pois as pessoas não se aproximavam dele, para não pegarem o demônio. Ao aproximar-se a Cristo o homem buscava ser acolhido, buscava sentir-se gente. Sabia que o Cristo que morreu por um projeto de libertação dos excluídos, pobres, marginalizados, não ia decepcioná-lo, não ia lhe recusar as dores e sua vida. O homem tinha certeza que o único que poderia compreender suas dores seria o Cristo que tão perto o esperava. No entanto, quando o bêbado pôs-se frente a frente com o padre, teve uma grande decepção. Uma pergunta lhe tirou o sonho, lhe tirou o sabor de dignidade que o Cristo lhe provocara:

- O senhor fez a primeira comunhão?

Num gesto de desolação, o pobre homem abaixou a cabeça e saiu da casa do Senhor, da casa onde cabem todos os filhos e filhas de Deus. O Bêbado, o maltrapilho, o demônio, o antiquado retirou-se da fila e da Igreja. As pessoas se sentiram aliviadas. Eu estava na fila, próximo ao homem. Com aquele gesto, retornei ao meu lugar. Que graça teria comungar, se Deus já estava naquele momento na humilhação do homem?

Passados alguns segundos, o homem retornou à casa de acolhida de Deus e foi ter com o padre. Insistiu. Mais uma vez recebeu um não. Desolado voltou para seu lugar e foi chorar a tristeza desse encontro frustrado. Fiquei observando. O homem tornou a se levantar e aproximou-se do altar do Senhor, do altar da vida, mas não teve jeito. Consolou-se.

Sentado em minha cadeira, imbuído de sentimento de desprezo, fiquei me questionando: Por que essa cena era possível, se Jesus havia morrido por um projeto de inclusão do pobre, da prostituta, do bêbado, dos leprosos, do sem-terra, dos estrangeiros? Como a Eucaristia, símbolo de inclusão de toda essa gente podia ser transformada em expressão de exclusão, ao ser negada àquele homem? Se o Jesus histórico estivesse ali, não iria expulsar o padre da Igreja? Não iria chamá-lo de Fariseu? Não perguntaria por que estava ele zelando pela lei do Sacramentalismo e deixando de lado a lei da vida por meio do amor ao próximo? A Eucaristia é o símbolo da inclusão do ser humano. Foi o próprio Cristo que em sua vida nos ensinou isso. Cristo é a própria inclusão, a quebra de normas, de regras, de leis que desfiguram o rosto humano em razão do que está escrito e do que tem de ser cumprido, ainda que não tenha fundamento na vida. Com Jesus, a lei perdeu espaço para a vida.

Em meu cantinho, ainda de cabeça baixa, esperei o término daquele encontro. O padre fez mais algumas belíssimas orações, encerrando com o envio, e que o Senhor nos acompanhasse. Levantei rapidamente e dirigi-me à porta. Olhei para a rua, na esperança de ver aquele homem. E lá se ia. Saiu rápido da casa de Cristo. Ia numa pisada de pé angustiada, mas sem ter a certeza de que o Senhor o acompanhava. Onde buscaria ele consolo agora, se de sua própria casa fora expulso? No próximo bar, talvez...

José Heber de Souza Aguiar, 23 de Setembro de 2005.
Comunidade Menino Jesus de Praga, Vila João de Barro, Niterói, Canoas-RS,

terça-feira, 26 de maio de 2009

Guarda-Chuvas

Sempre, quando criança, pegava-me cantando uma música que havia aprendido, acho que na primeira série com a professora Sandra. Era sensacionalmente linda. Simples nas estrofes e atraente nos versos. E assim eu recitava: “era uma casa muito engraçada, não tinha teto não tinha nada...” Era uma música que eu amava! Gostava de suas rimas o que facilitava a lembrança contínua de seus versos. O que mais me tocava nessa música era a historinha. Imaginava, mesmo com tão pouca idade, que retratasse a história de uma pessoa solitária que morava sob um guarda chuva. Esquecia do teto, e levava em conta o fato de que não tinha parede, chão, porta, janela, endereço... Depois, já grande, entendi que se tratasse de uma espécie de ironia. O poeta – grande Vinícius! - queria retratar a realidade das pessoas que não tinham casa. Talvez um mendigo. Quando em meu Cesto de Flores, pensei a possibilidade de a letra da música retratar a realidade de um povo sofrido expulso de suas terras por grileiros e fazendeiros. Essa gente violentada era, para mim, esses moradores da casa, sem teto, sem parede, sem chão e sem endereço.

O que me perseguia sempre era a idéia do guarda-chuva. Tenho paixão por um objeto desses! Acho-os misteriosos. Penso que esse, sim, é um grande amigo de nós, humanos. Talvez até o maior! Como as pessoas, por deveras vezes, também nos trai. Esquece de nossa existência deixando-nos à mercê dos tempos e ventos. Em seu colorido hipnotizante ou em seu preto magistral esconde-se um ar de superioridade. Está acima da cabeça dos seres humanos. Protege seus corpos e seus pensamentos em sol ou chuva. Isso lhes faz especial.

Outro dia, em uma dessas manhãs, a caminho do Unilasalle de Canoas, tive uma idéia meio estranha. Era um instante chuvoso. Como eu andava com meu fiel parceiro, não sofri as intempéries daquela surpresa, presenteada pelas minúsculas gotas de água que caiam sobre aqueles reflexos tímidos de sol. Peguei-o, abri e o pus sobre minha cabeça. Segurei-o firme e pronto, já estava protegido! Ao ver inúmeras pessoas com seus guarda-chuvas das mais diversas cores, descendo a passarela da estação que me levava ao meu local de estudo, me veio um forte espírito de político. Homens e mulheres de todas as idades andavam com tamanha pressa sem darem conta do perigo que representava as pontas de seus objetos. Então pensei: “se fosse político faria uma lei proibindo a fabricação desses objetos com pontas”. Sem ocupar um desses cargos de maior efeito, dificilmente conseguiria algo do tipo. Ri de mim. Seria um projeto bem maluco! Acredito que as pessoas andariam mais tranqüilas, pois não precisariam se proteger de terríveis pontas. Pensei no sofrimento que causaria a esses parceiros. Com certeza perderiam todo o charme que as pontas lhes presenteiam.

É sempre gostoso lembrar-me desses amigos de todos os momentos. Tenho tido uma saudade especial de outra cena com esses objetos. Trata-se de episódios acontecidos em Ananindeua, no Pará. Todos os dias ao ir à Ocupação Antônio Conselheiro “dar aula”, lembrava logo de meu amigo de sol, que sempre me fazia companhia naquelas viagens. A caminho de meu ofício passavam por mim vários estudantes de uma escola vizinha. Riam de mim. Achavam estranho eu andar com meu amigo. Depois de um ano se acostumaram com a idéia. Quando eu entrava na estrada que dava acesso à sala onde trabalhava, de longe meus alunos viam as pontas de meu companheiro de estrada. Então gritavam por meu nome e vinham correndo me abraçar. Meu companheiro “tamanho família” acolhia-os com todo cuidado. Tratava de dar sombra para todos sem se incomodar.

Dentre outras lembranças das quais tenho muita saudade, recordo a falta que me fazia um desses companheiros dentro dos coletivos de Belém em dias de chuva (quase todos os dias). Havia coletivos tão velhos que entrava água em muitos deles. Quando não pelas janelas ou pelas portas era por buracos no Teto. Imaginava-me com meu amigo de chuva aberto no interior desses veículos. Com certeza faria um enorme bem para muita gente.

Ainda nesses coletivos abandonados pelo tempo, olhava pelas janelas amarrotadas de poeira. Nas avenidas principais como Presidente Vargas e Pedro Álvares Cabral, via um mundo de cores, que mesmo sufocadas pelos vidros manchados, não perdiam sua beleza. O colorido propiciado por inúmeros guarda-chuvas mais parecia um amontoado de vespas brigando. Movimentavam-se de um lado para outro. Iam e vinham por debaixo das mangueiras da primeira avenida. Ria das possibilidades de cenas com tantos daqueles em minha frente.

Em minha memória de criança escondem-se vários guarda-chuvas. Nas brechas de meus pensamentos, vez por outra, me aparece uma belíssima cena acompanhada por um desses. Gosto muito de uma em que, em dias de chuva, eu e minha irmã íamos para casa debaixo de nosso teto ambulante, para nos proteger daquele mar que desabava. Andávamos pelo menos um quilômetro e meio da Escola até nossa casa. Nesse percurso passávamos por aquelas ruas esburacadas onde as enxurradas mostravam seu potencial de voz. Cantavam em tom grave. Um som confuso entre barítono e baixo. Em nossa sorte, por vezes, passavam carros e motos que nos lançavam lama. Dava a impressão de que, quando viam pessoas sob a chuva, aceleravam de propósito e, então, se aproximavam das pessoas e lhes banhavam. Penso que sentiam prazer nesse espetáculo.

E lá íamos nós. Eu estudava na terceira série. Era fininho. Tinha o cabelo preto igual de índio. Na verdade parecia um. Devia ter uns dez anos. Já minha irmã era um pouco mais alta e tinha três anos a mais. Em seu cabelo desarrumado pelo vento se escondiam umas tímidas mechas loiras. Seus olhos verdes se perdiam sob nosso guarda-chuva. Era um pouco mais fina que eu. Isso não lhe impedia de me bater em casa, quando a mãe saia. Fazíamos aquele percurso sob nosso fiel protetor. Como esse estava em fase de crescimento, nos abraçávamos para que não ficasse nenhum de nós à mercê da chuva. Era magnífico aquele momento. Ali esquecíamos as constantes brigas de casa. Deixávamos de lado os diversos momentos que ela me batia e eu corria atrás dela com o cabo de vassoura. Não levávamos em conta os fuxicos que fazíamos um contra o outro quando nossos pais chegavam de seus trabalhos. Ali, sob aquela proteção, nos perdoávamos! Era como se fosse um confessionário, mas sem precisar de palavras, pois tudo acontecia naturalmente.

Tendo como positivas essas memórias, inculcado no delirar de minha imaginação, penso como seria, se todos fizessem a experiência do guarda-chuva. Não o objeto por ele mesmo, mas o que ele, enquanto objeto de significação pode inspirar. Seja significando - para os excluídos de nossa sociedade - casa, terra, lar, emprego, escola, lugar de perdão ou simplesmente sombra em meio a uma sociedade (de sóis ardentes) excludente que leva em conta o dinheiro ante a vida humana.

Canoas - RS, 29 de junho de 2005
(Em homenagem ao aniversário de minha irmã, Irenilce de Souza Aguiar)

Publicada na Antologia: Novos Talentos da Crônica Brasileira (Vol. 3). Rio de Janeiro: Câmara Brasileira de Jovens Escritores, 2006.

Referenciada na Pesquisa: GAZZO, Eunice M. Autores da Casa do Poeta de Canoas: os processos de memória da produção literária em busca da infância. 136f. Dissertação (Mestrado em Educação). Canoas, Centro Universitário La Salle, 2011.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Unificação da Língua Portuguesa: prós e contras, o ganho é futuro

Brasil, Portugal e os demais países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – outros seis países – entraram em acordo para a concretização da unificação da língua portuguesa. Como se trata de um projeto que já vem sendo discutido há anos, muitos especialistas vêem esse acordo com bons olhos, mas outros muitos não concordam com essa decisão. Mas afinal de contas, qual a importância dessa unificação ortográfica? Qual o pano de fundo de interesses nessa padronização da língua?

Os especialistas que apóiam a unificação da língua o fazem por crerem que com esse acordo haverá maiores possibilidades da universalização da língua, o que significa sua aceitação em constituições internacionais – como uma das línguas oficiais da ONU, por exemplo. Esses especialistas afirmam ainda que com esse acordo será facilitada a circulação de livros, principalmente didáticos, entre os países lusófonos – com isso gastar-se-ia menos dinheiro em vista da publicação de edições diferentes para os diversos países. São idéias plausíveis, mas o que afirmam os descontentes com a padronização?

Há críticas fortes como a de Cláudio Moreno ao comentar que, tendo assistido às mudanças de 1971, muitos dicionários e livros tiveram de ir para o lixo. Para esse especialista em língua portuguesa, a unificação “é uma tolice. Só países ridículos fazem reformas ortográficas”. Ainda pensando nos livros que vão para o lixo, o professor aposentado da USP, Francisco Savioli, crê que a unificação é “uma reforminha tímida... que não mexe com o essencial, mas vai provocar a queima de milhões de livros”.

A partir das críticas positivas e negativas em relação à padronização da língua, o que realmente apoiar? Vale mesmo a pena a queima de tantos livros, em nome de uma maior universalização da língua? Em nome de uma maior e melhor circulação de livros pelos países lusófonos, vale a adaptação dos oito países a essa unificação? Atrás da unificação não estariam maiores interesses, como os das editoras, que gastariam menos para fazer circular seus livros? Mas, por outro lado, não é positivo o fato de uma maior circulação das produções científicas, bem como culturais entre todos esses países?

Diante de tantos prós e contras, porque não criar, por exemplo, uma política que minimize os efeitos negativos da unificação em relação à reciclagem dos livros? Num mundo onde tudo corre para a globalização, não há como os países lusófonos se porem à margem. Parar no fator negativo da destruição de tantos livros é pensar somente no que a unificação pode significar no momento de sua implantação. Pensar no que essa unificação pode significar em longo prazo é ver o lado positivo, ver o que todos ganharemos com isso – considerando como sendo o maior ganho a universalização da língua e o livre trânsito das produções de todos os países entre si, num futuro próximo. E é em razão disso que não dá para posicionar-se contra a padronização da língua.

Porto Alegre – RS, 04 de Agosto de 2008.

As opiniões dos autores, opiniões citadas no texto, foram extraídas de artigos encontrados na Internet, por meio de sites de pesquisa.

Semáforos, estações do ano, e confusão na educação.

Em minha última tarde de domingo, caminhando pelas ruas de Porto Alegre, me peguei delirando, posto à beira-rua sob um semáforo, à espera do bendito sinal verde, para que eu pudesse atravessar a rua (não quis correr feito louco driblando o sinal vermelho, embora a chuva fosse iminente); um sopro de tempo, mas suficiente para passarem por minha cabeça alguns fatos cômicos (tornaram-se cômicos por meio da relação tempo e espaço oriunda de minhas reflexões) e que recordei do passado de criança estudante. Mas por que essas lembranças logo diante daquele bicho de três olhos que pisca de vez em quando, e as pessoas obedecem e seguem felizes (ou com raiva, se a piscada tiver sido vermelha)? Bom, tanto esse bicho de três olhos, como as quatro estações do ano estavam relacionados aos maravilhosos conteúdos estudados na terceira série. Vou explicar o triste e o cômico.

Imaginem uma escola localizada numa pequena cidade da Amazônia, onde não havia grande movimento de automóveis no trânsito (não posso dizer o mesmo das bicicletas) - o que já é bem diferente hoje-, ensinando o funcionamento do semáforo. Não que eu não tivesse o direito de aprender, mas, por favor, poderiam ter ensinado algo mais concreto e que eu não pudesse aprender em 1 minuto olhando o movimento do trânsito numa cidade grande. Confesso: o que mais me atraía em aprender “aquilo” era a chance que a professora nos dava para pintarmos os olhos daquele troço esquisito de vermelho, amarelo e verde.

Já que falei na introdução os exemplos de semáforo e as quatro estações, vou respeitar a ordem, depois me dou o direito de dar outros exemplos do trágico-estúpido-cômico. Como disse, esperava o sinal verde enquanto serenava. Aqui em Porto Alegre é primavera. Nesse tempo, faz calor, mas chuvisca. É um período bem agradável. Gente, voltemos à terceira série. Na semana posterior à aula sobre semáforo, aprendi outra grande maravilha: as quatro estações. São João Batista de La Salle interceda aí, dê uma mãozinha, dê um jeito pra ver se esse negócio muda. Onde já se viu uma escola na Amazônia ensinar as quatro estações sendo que só conhecemos inverno e verão?!

Talvez pior do que aprender sobre o funcionamento do semáforo e das quatro estações, tenha sido aprender, na primeira série, o alfabeto, usando palavras que eu não conhecia a referência concreta para observá-las. Exemplo de algumas palavras que estudei: uva e leão. Uva era referência para a vogal U; leão, referência para a consoante L. Lembrar uva fazia lembrar a vogal U, e lembrar do leão feroz recordava a consoante L. Meu Deus, tenha piedade! Santo padroeiro dos professores, interceda! Nunca vi uva plantada na Amazônia e muito menos comentários de que alguém fora atacado por um leão em nossas densas matas. Temo que alguém acredite que exista uva e leão lá (a menos que seja o animal no zoológico, e a uva como fruto de experiência em viveiros de laboratórios).

Chegam a ser cômicos esses relatos, mas antes de cômicos eles são tristes. Alguém pode comentar: “bem, mas isso aconteceu há 13 anos. Hoje é diferente”. Gostaria de crer que hoje é diferente, mas não é bem assim. Creio que a educação no Brasil conta com um grande avanço, mas, ao mesmo tempo, permanece em enorme atraso. Explico-me: em determinados lugares “o conteúdo a ser abordado” é feito de modo bem novo e seguindo princípios de inclusão da realidade dos educandos, levando em conta sua história, sua cultura. Mas ao mesmo tempo, no mesmo país, estado e, arrisco dizer, até mesmo em uma mesma cidade, é possível encontrarmos realidades educacionais bem diferentes: a arcaica educação a partir de elementos distantes da realidade do educando, e a revolucionária aprendizagem por meio da familiaridade do educando com o “objeto” de estudo.

Revolução na educação frente a metodologias arcaicas: princípios renovadores na aprendizagem frente à velha “decoreba” - uma espécie de dilema frente à dificuldade em encontrar uma linha educacional que realmente seja capaz de fazer um país de pessoas educadas no sentido da capacidade de leitura da vida, e de perceber as ideologias acopladas nos aparelhos ideológicos - só podem revelar uma certa confusão, no fim das contas. Precisamos urgentemente - antes de ensinar equações, regras da língua portuguesa, ou alfabetizar a partir de elementos que distam da realidade do educando -, de uma educação que forme para a vida, e não somente para passar no vestibular. Caso continuemos caminhando nessa, creio eu, confusão geral, nossos educandos permanecerão estacionados frente ao sinal vermelho, esperando o sinal verde da educação para a liberdade, que nunca virá.

Porto Alegre - RS, 2007.

Jornalismo e segundas intenções: A Veja, meu professor, e eu.

“Nem bem havia lido, e já havia entendido o recado”. É por aí que caminham os artigos da maioria de nossos jornais e revistas, postados diariamente com a nobre intenção de “vender” informação (e pregar determinada ideologia) sem nem permitir uma visão no mínimo razoavelmente crítica, da parte do leitor. Não é estranho encontrarmos críticas a quem profere críticas ao círculo vicioso dos jornais, bem como não é estranho encontramos mestres e doutores (não somos todos mestres e doutores em alguma coisa?) que crêem fidedignamente nas informações de nossos meios de comunicação.

Não sou pessoa formada em comunicação social, de modo que não tenho lá muita autoridade para proferir críticas acerca de jornais, revistas, etc. Mas um direito eu tenho: falar sobre minha opinião (embora não tenha sido incitado a isso na formação escolar, e muito menos o seja positivamente por qualquer meio de comunicação de alcance mais geral, no meu Brasil) e postar minha crítica livre a respeito do tema. Na intenção de alcançar o objetivo deste texto, me permitirei expor exemplos.

Uma pessoa muito boa, com quem tenho a honra de ter boas aulas de História geral (não cabe aqui citar seu nome), algumas vezes trouxe artigos da revista Veja aos nossos encontros. Nunca compreendi como negativa sua atitude, mas me sentia de certo modo agredido quando sua opinião era tal qual a da revista. Por ter o periódico uma tendência elititária clara, acerca dos mais diversos temas, não compete a qualquer professor expor tal posição sem mostrar uma visão que encaminhe a outras conclusões. Cheguei a comentar essa opinião minha ao professor, que, creio eu, pensou, naquele momento, que minha intenção tenha sido prejudicar seu trabalho.

A missão do professor não é dizer ao educando no que deve acreditar ou não, mas oferecer ao estudante os mais diversos caminhos para que ele mesmo, dentro das clarezas das informações aprendidas, decida no que acreditar e que seguir. Mas voltemos ao nosso objetivo.

Dias depois da conversa com o professor acerca da tal revista, saiu uma edição desta, acerca do filme Tropa de Elite. Havia assistido ao filme, e logo tido acesso a um artigo denominado Tropa de Elite: a Criminalização da Pobreza (a edição da revista veio dois dias depois de eu ter tido acesso a esse artigo), mostrando, de acordo com o autor, Ivan Pinheiro, a intenção fascista do filme, que objetivava colocar medo, e mais, criminalizar a pobreza; onde o filme for assistido - nas palavras do autor -, “estará contribuindo para que a sociedade se torne mais fascista e mais intolerante com os negros, os imigrantes de países periféricos e delinqüentes de baixa renda”. O autor afirma à respeito da mídia “que no Brasil, a mídia burguesa há muito tempo trabalha a idéia de que estamos numa verdadeira guerra, fazendo sutilmente a apologia da repressão. Sentimos isso de perto”. E questiona: “quantas vezes já vimos pessoas nas ruas querendo linchar um ladrão amador, pego roubando alguma coisa de alguém? Quantas vezes ouvimos, até de trabalhadores, que ‘bandido tem que morrer’?”.

Assim que li o artigo, confirmei uma velha impressão que tinha acerca da naturalização da repressão. Ouço muito a afirmação de que “bandido tem que morrer”, e não encontro respostas, pois ainda acredito que como cristãos não devíamos fazer esses juízos, pois são contra nossa fé. Afinal de contas não foi um “bandido” desses que tinham de morrer que trouxe a boa notícia, ao anunciar o Reino de Deus? Não me digam que Jesus foi uma coisa e esses que “têm de morrer hoje” são outra. Jesus mesmo foi visto com o maior criminoso de sua época.

Depois de ter tido acesso a esse texto, o professor, do qual já fiz referência, trouxe e expôs a matéria da revista Veja acerca do mesmo tema. O texto trazia uma posição totalmente contrária ao artigo que eu havia lido. Senti aí fascismo na própria reportagem, e percebi que a crítica que Ivan fazia à mídia burguesa se encaixava perfeitamente com aquela reportagem. Comentei com o professor o artigo que eu lera e que, em virtude dessa crítica, tinha outra visão acerca do filme.

Ainda sobre a revista Veja, encontrei na coluna do jornal Zero Hora de 26 de outubro de 2007, assinada por David Coimbra, um comentário que resume bem a postura dessa revista. O texto denominado “As Vejas que vi” fala de duas reportagens sobre Che Guevara realizadas, uma em 1997, e a outra em 2007. Em 1997, Dorrit Harazim, na reportagem com base em documentos e entrevistas, intitulada O Triunfo Final de Che, fala de Guevara como alguém, “bonito, destemido e morreu jovem, defendendo conceitos igualmente jovens, como solidariedade e a justiça social”. David comenta que, na Veja de 2007, intitulada “Che: há 40 anos morria o homem e nascia a farsa”, “os autores não saíram para fazer a matéria e retornaram com a convicção de que Che foi um monstro”. Che foi descrito como um ser desprezível. David se pergunta: "em qual Veja devo acreditar? Por algum motivo a Veja mudou”, diz o autor, “Falo do Jornalismo da Veja, da carne da Revista”. Essa revista “parece preocupada mais em provar seu ponto de vista do que em contar o que está acontecendo. Como, então, posso ter certeza de que a cobertura da crise no Senado não estava eivada por alguma segunda intenção, como dá a entender a edição reservada ao Che?”.

Queria que o meu professor tivesse abertura para outras possibilidades e visse que a Veja não é a revista que vai salvar o mundo e que há ideologia demais em sua “pregação”. Está bem clara sua postura nos exemplos da “Tropa de Elite” e do “Che”. E se o próprio comentário de David - que é Jornalista e se diz leitor antigo da revista Veja -, aponta essa postura da revista, o que mais falta para percebermos que existe sim uma pesada força que tenta vender idéias e pregar, além de costumes, formas de agir, senão de comportar-se na sociedade?

Porto Alegre - RS, 2007.

A uma consciência sem consciência

"A consciência da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à inteligência" (Fernando Pessoa, in: Livro do desassossego,2006, p.99).

Queria poder começar chamando-a de querida, mas não sei se você é mesmo querida. Se é, quando é, a amo, mas são poucas as vezes que a amo: a odeio quase sempre.
Que digam o que quiserem os que esta lerem. Pode parecer ridículo proferir-lhe essas declarações, afinal, onde já se viu alguém escrever carta para sua própria consciência? Ah, sim! Mas você não é qualquer consciência: é a minha tão cara consciência!

Você é a maior e a pior perseguição possível de se encontrar. Comigo não foi diferente. Quero me livrar de você, mas como isso é possível? Morrendo? Morrer não quero, embora tenha vivido todos esses anos, e a única certeza que tenho é a de minha morte. A maior pergunta nessa certeza é se quando de minha morte vou continuar com você falando-me aos ouvidos “faça isto, faça aquilo”. Será você uma consciência eterna? Deus queira que não seja eterna e que nossa relação acabe-se aqui mesmo. Basta nossa parceria nessa vida.

Quando nasci meu primeiro choro foi culpa sua. Foi então que percebi que já não estava naquele lugar tão confortável e agradável. Tive consciência de que estava em outro mundo. Era essa a primeira liçãozinha dos milhares que me daria depois, e das quais agradeço poucas. Desculpe-me por demonstrar tanto ódio e pouco amor ao seu auxílio nesses tantos anos. É que na verdade tenho tido a impressão de que minha vida seria melhor sem seus palpites. Não me refiro àqueles momentos que você me tirou das maiores dificuldades; sem sua ajuda eu estaria numa situação mais complicada hoje fazendo, vai saber o quê e onde, mas com certeza não estaria gozando a vida como a gozo.

Ah, seus conselhos! Segui-os tão à risca e hoje percebo que poderia ter feito diferente. Não ouvi minha opinião nunca. Sempre fora sua opinião. E sempre que não queria sua opinião nem a minha, e me dirigia a outra pessoa em busca de outra opinião, a última coisa que ouvia depois dos conselhos era: “siga o que sua consciência mandar”. Veja bem, sua ingrata! Foi isso que fiz. Você enfeitiçou todo mundo para que sempre mandassem eu ouvi-la? Por que fez isso? Como fez isso?
Você sempre se saiu como a certinha da história. É impossível encontrar algum erro de sua parte. Já eu, nunca tive mérito em meus atos. Todos os méritos sempre são dirigidos a você, pois sempre dizem que eu agi com consciência. Se sigo seus conselhos e o resultado final não é dos melhores, logo me dizem que agi sem consciência: você nunca tem culpa de nada, por isso chega de ser bonzinho e levar toda a culpa.

De uma coisa tenho certeza: Você é a consciência mais sem consciência que é possível existir. Como pode uma consciência ingrata como você não ter consciência de que me perturba e me deixa com a consciência tão pesada diante de suas perturbações?

Quero lhe pedir que acabemos nossos laços e que procuremos um jeito de fazer isso de modo que nos separemos o mais rápido possível. Quero viver somente com minhas opiniões. Preciso de liberdade para decidir por onde caminhar e o que seguir sem ter de contar com seu auxílio. Não preciso de consciência nenhuma que me dê ordens, dizer o que devo e o que não devo fazer. Quero viver sem consciência de que vivo, talvez assim sofra menos, porque essa consciência é dura.

Espero que essa carta faça você refletir sobre todos esses pontos e perceba o que está fazendo comigo. Não me arrependo do que lhe relato aqui nem nunca me arrependerei. Mas quero que você, ao ler minha angústia, se doa. Que doa sua consciência, consciência! Quero que se arda, se queime. Você não conseguirá fazer com que eu reveja minhas decisões como fez com Raskólhnikov de Dostoievski. Serei mais firme que ele. Portanto, deixe-me em paz e não mais me siga.

Fique bem... Longe de mim.

Do seu desgosto eterno:

JHSA

***
11/09/2008 – Porto Alegre- RS
Crônica solicitada para fazer parte de um livro, mas não foi enviada.

Filosofia barata pra coisa cara

Parei para pensar (não se pode pensar em movimento?). Por cinco minutos deixei para trás os maiores pensadores da história. Pobres filósofos frente àqueles poucos minutos que me haviam ocupado os neurônios. O princípio básico era desconstruir tudo que fora construído sobre verdades ditas inquestionáveis. Começar pelo ser humano era o caminho mais lógico. Quem é? O que é? Por que é? Para o que é? Ele é? O senso comum me deu um prato cheio de respostas fáceis.

Não encontrar respostas fixas só pode ser regra geral quando se pensa em críticas a sistemas, modelos, ou mesmo em elaboração de base de tradições, ideologias, etc. Não conheço “verdade” que não tivesse de ser atualizada (como é possível se atualizar a verdade se ela é o máximo de si?) para sobreviver à história.

O ser humano também necessita urgente se atualizar, atualizar seus princípios, atualizar as suas verdades inquestionáveis. Mesmo que não queira ele vai sendo posto frente a situações que o faz pensar seriamente sobre o que construiu. Mas o que foi construído em toda sua existência, havia como não ser construído? Não é parte de sua própria natureza, transformar? Mudar realidades? Construir artifícios?

Natureza do ser humano. Ele tem natureza? Ou ele é natureza? Ele faz parte do mundo ou é mundo? O ser humano é racional ou irracional? Ou é racional e irracional?

Nos bate à cara a urgência de cuidarmos do nosso planeta. Mas quem está dizendo isso? A humanidade inteira está percebendo que o planeta já não suporta tamanha quantidade de lixo, de destruição, de poluição. É a natureza se vingando de um ser que sempre se achou à parte dela. Como não estar acima da natureza se ele foi criado para dominá-la? Certamente foi esse o primeiro pensamento de nossos antepassados.

Foi necessário que nosso planeta começasse a dar sinais seríssimos de que já não suporta tamanha destruição para que percebêssemos que somos parte do todo que ele é, e que seu fim também é o nosso fim. A tosse tuberculosa do planeta faz-nos ver que somos natureza e que só sobreviveremos freando esse ciclo destruidor que sustentamos. Depois de muitos anos, só agora estamos assumindo que somos natureza e não algo à parte.

Assumimos a poucas centenas de anos que a razão seria o princípio que regeria o que antes era comandado pela fé (na verdade as máximas da Igreja). Se fizermos um balanço do que produziu esta dita racionalidade, veremos que todo o fruto, na verdade (de modo geral) não passou de irracionalidade. Como justificar a irracionalidade no mundo dos negócios, da política, das relações internacionais? Até que ponto essa dita racionalidade ajudou o ser humano a ser mais livre, mais humano? O dito irracional, há anos, pode ser visto hoje como a forma mais racional possível. Os valores, princípios de cuidado e de pertença, relegados pela dita razão de outrora, assume hoje a identidade de verdadeira razão, pois são os princípios que nos faltaram na história para que não chegássemos onde a dita razão de outrora (mas, “irrazão” agora) nos levou.

O ser humano que sempre se viu no direito de dominar, uma vez que se entendia como acima da natureza, tem de ser ver cada vez mais como natureza, como membro do todo do universo. Como natureza, não pode mais querer acabar com a natureza da qual ele é constituído e a qual constitui. Isso é suicídio. Esse mesmo ser humano que há muito se entende como racional, pois é capaz de pensar e encontrar as melhores soluções tem de se dar conta que as sensibilidades, o sentimento de cuidado e de pertença, a própria fé que cuida e preserva, são válidos e devem ser levados em conta, do contrário caminharemos cada vez mais para perto do precipício e na queda, é certo o fim.

Porto Alegre - RS, 2007.

Publicada no livro:
"Crônicas à Beira do Caos" da Câmara Brasileira de Jovens Escritores. Rio de Janeiro: CBJE e BrLetras, 2007.