domingo, 4 de agosto de 2024

O recomeço como receita para o sucesso

O insucesso transforma-se numa oportunidade de grandes conquistas se usado com inteligência e como momento de recomeçar. Ele faz parte da vida de quem arrisca, projeta, cria. Não recomeçar frente ao insucesso é entregar-se ao fracasso.

O insucesso faz parte da vida. Nós sentimos seu peso quando por muitas vezes não alcançamos objetivos planejados. Frente a essa experiência desoladora é necessário experimentarmos o ideal do recomeço, uma vez que o insucesso não pode ser o fim de um projeto no qual investimos tantas energias e expectativas.

Somente recomeçando na vida, repensando nossos projetos, refazendo meios para concretizá-los... Etc. superamos nossos insucessos e abrimos novos caminhos, pois recomeçar é abrir novos caminhos.

Na vida temos muitas oportunidades. Elas exigem esforço e iniciativa. Exigem inteligência, sabedoria e disposição para a possibilidade de uma nova frustração. Não podemos ter medo de encararmos desafios em virtude da possibilidade do insucesso, pois ele só existe onde há tentativa de conquistas, de realização de projetos.

Quando fazemos profunda experiência de não conseguirmos nossos objetivos, sentimo-nos fracassados, com o sentimento de nunca podermos alcançar o que tanto queremos. O fracasso é a conseqüência de não recomeçarmos frente ao insucesso. Recomeçar nos alimenta. Em cada ato de recomeço, damos adeus ao sentimento de fracasso e nos nutrimos com o sentimento de quem é capaz de vencer as dificuldades que a vida apresenta.

Recomeçar é a receita do sucesso. Se numa primeira tentativa nos frustramos, desistir de uma nova tentativa pode ser o aborto de uma grande obra. Frente a essa frustração cabe-nos usar nossa inteligência para repensarmos o caminho e recomeçarmos. Recomeçar é um ato de grandeza que só quem viveu o insucesso pode experimentar.

Porto Alegre – RS, 08/05/2007

Uma crítica ao utilitarismo ético

“A melhor ação é a que busca a maior felicidade para o maior número de indivíduos”. Essa frase do filósofo escocês, Francis Hutcheson, dá a linha mestra do utilitarismo ético. No entanto, os expoentes do utilitarismo ético são os ingleses Jeremy Bentham e John Stuart Mill, falecidos em 1832 e 1873, respectivamente. Mas afinal, o que é o utilitarismo ético? O que ele visa? Onde percebemos sua aplicação na sociedade? Qual sua implicância para o indivíduo? Buscaremos fazer aqui uma reflexão crítica do utilitarismo ético tendo como base teórica principal o capítulo sete do livro “Ética”, do filósofo da libertação espanhol-mexicano Adolfo Sánchez Vázquez.

O que é o utilitarismo ético? O que ele defende? A sua designação, de princípio, nos remete a algo que é útil. O uso ou a aplicação do que é útil, geralmente é pensado a partir do particular, do indivíduo. Nesse caso, ligamos esse algo útil ao indivíduo, seu desejo, o que para ele é o bom. Precipitamo-nos pensando assim; o utilitarismo é justamente, em primeira instância, a anulação do desejo do sujeito em benefício do interesse do maior número possível de pessoas. O utilitarismo ético é o bom como o útil, onde não é o interesse do indivíduo que é considerado em primeira instância, mas sim o objetivo maior de uma sociedade, do Estado, ainda que os meios para que o maior número seja beneficiado, resulte na anulação, ou até a morte do indivíduo. A felicidade para o maior número possível é o que importa, independentemente dos meios usados para tal objetivo.

O utilitarismo aceita a morte do soldado na guerra em nome do interesse maior do Estado, ainda que essa morte resulte em dor para sua família. A morte do soldado é compreendida pelo utilitarismo ético, de acordo com Sánchez Vázquez (2003, p.169), à medida que contribua para aumentar ou estender a quantidade de bem para o maior número de pessoas. O interesse da família e do soldado está também incluído neste ato, pois são partes da nação beneficiada. Vemos, por esse exemplo, a possibilidade de que algo bom venha a resultar de uma ação que não seja boa para o indivíduo.

De acordo com Sánchez Vázquez (2003, pp. 170-171), há uma dinâmica difícil de solucionar no pensamento utilitarista. Tem-se a afirmação de Francis Hutcheson de que a melhor ação é a que busca a maior felicidade para o maior número de indivíduos. Temos, por outro lado, o pensamento de Stuart Mill, segundo o qual o útil ou o bom é a felicidade, o que produz mais felicidade. Há um impasse claro: optar pela maior felicidade ara um número menor (Mill), ou o que traz menos felicidade para um número maior de pessoas (Hutcheson)? É no meio social que esse impasse gera conflitos.

Numa sociedade dividida em classes sociais com interesses distintos, o maior número, ou o número dos pobres, dos excluídos, dos menos favorecidos, tropeça nos interesses do menor número, aqueles que têm o poder econômico e de decisão das políticas do Estado. Isso acontece se a felicidade, o poder ou a riqueza se identificar com o conteúdo do útil. Veremos daí que “a distribuição destes bens [a felicidade, o poder, a riqueza] que se julgam valiosos não pode estender-se além dos limites impostos pela própria estrutura econômico-social da sociedade” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2003, p.171), que inclui a correlação de classes, organização estatal e relações de propriedade. Por muito tempo as mulheres não tinham direito a voto, e a educação não era paga pelo Estado. A minoria que tinha o poder não desejava que a grande maioria da população obtivesse esses direitos. Foi John Stuart Mill, quem apresentou essa revolucionária idéia baseada nos princípios utilitaristas da felicidade para a maioria (COBRA, 2001).

No utilitarismo ético vimos que o interesse do indivíduo não é o mais relevante, enquanto interesse isolado. O importante nessa forma normativa (segundo COBRA, 2001) de aplicação ética do bom é o interesse do maior número possível, e é aí que entra o interesse do indivíduo que se sacrifica pelo Estado, como no exemplo do soldado que vai à guerra. O utilitarismo é falho à medida que uma minoria tem o controle do poder no Estado. Logo, temos uma minoria que defende apenas seus interesses. Quando isso acontece, o princípio do utilitarismo como forma de expressão do bom, princípio que defende a felicidade para o maior número possível de pessoas, não está sendo respeitado. Torna-se difícil a observância do objetivo do bom como o útil. Para realmente o bom como o útil fruir, os interesses defendidos deveriam ser o da maioria da população, tudo o que lhes pudesse trazer dignidade de vida, condições humanas, enfim, a felicidade. Concluímos que o bom como o útil, como o único meio de trazer a felicidade para a maioria dos cidadãos não passa de utopia.


Porto Alegre - RS , 11/09/2008,





BIBLIOGRAFIA


COBRA, R. Q. Temas da Filosofia: Resumos, in http://www.cobra.pages.nom.br/ft-utilitarismo.html , acesso em 11 de setembro de 2008.

SÁNCHEZ VAZQUEZ, Adolfo. Ética. 24ª ed. Rio de Janeiro, Civilização do Amor, 2003.

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Novos tempos ou tempos novos: das novas possibilidades digitais à construção do fazer docente

Como é tão natural nesses dias o contato das crianças com computadores, celulares, enfim, com os mais diversos recursos digitais. Tem-se impressão de que os neoviventes já nascem capacitados para lidar com esses meios. Essa constatação me leva a recordar que somente aos 16 anos toquei em um computador e com 21 tive um celular, o que parece inconcebível hodiernamente.

Quando a questão é o universo digital e a educação, somos levados à percepção de que a escola está atrasada frente aos novos estudantes. Ainda que desde cedo as crianças tenham, na escola, contato com essas possibilidades digitais, vê-se que essa instituição ainda não sabe potencializar o uso desses artefatos o que leva a crer que é demais vislumbrar os professores produzindo conteúdos digitais.

Cada afirmação faz sentido a partir da significância do lugar de quem afirma. Minhas experiências com novas possibilidades levam-me a crer que a situação normal é a conformação dos novos recursos ao jeito tradicional do professor, todavia, encanta-me a ideia de ver o professor mudar, ter outra postura e, potencializar sua ação docente utilizando como recurso as novidades especialmente oferecidas pelos recursos digitais.

Minha resistência em acreditar em uma não conformação por parte de professores às práticas viciadas obriga-me a uma ligeira anamnese quanto à questão. Recordo-me que em meus anos escolares a grande revolução foi uma sala de vídeo, com uma TV instalada para que os professores pudessem utilizar como recurso pedagógico. Ficávamos na expectativa de assistir a um filme que correspondia aos temas ensinados. A educação estava avançando, pois estávamos saindo do quadro e giz, o que nos fazia brilhar os olhos. No entanto, aquilo que parecia a maior revolução, tornou-se empecilho: muitos professores faltavam pelos motivos mais estapafúrdios, e a solução? Todos para a sala de vídeo assistir qualquer coisa, ou mesmo filmes já vistos etc. Rapidamente percebemos que a existência daquele espaço na escola significava a passagem de um ideal qualificado de aprendizagem à cansativa perda de tempo!  Ora, os momentos de aula com quadros cheios de textos, em muito, foram substituídos por horas e mais horas de filmes ou, raramente, apresentações acerca dos temas estudados.

As novidades continuaram surgindo e novos recursos puderam ser utilizados pelos professores. Nesse transcurso o data show substituiu a sala de vídeo. O quadro de cimento e o giz de gesso deram lugar ao quadro a pincel e os slides. O pior é que não poucos professores que escreviam em todo o quadro e apagavam antes que os estudantes copiássemos, reproduzíssemos em nossos cadernos surrados, agora o faziam com os slides: ganharam uma potencial arma para encher o quadro de texto! Cotidianamente, muitos professores se relacionam assim com o que podia significar contribuição: adaptavam as novidades ao tradicional mais do mesmo de seus fazeres docentes eliminando toda significância positiva que as novas tecnologias pudessem representar.

Observando o histórico recente e as repedidas estratégias para ajustar às suas maneiras os novos recursos, é difícil aceitar como uma possibilidade próxima que os professores se empenharão em produzir conteúdos via mídias digitais. Também é verdade que, ainda que isso possa não acontecer, não se pode esperar que os atuais educadores se tornem aqueles que farão uso desses recursos e produzirão material contextualizado para o trabalho docente. Toda mudança leva tempo. E, sendo a escola um dos espaços mais resistentes a mudanças, é difícil acreditar que tão rapidamente aconteça uma radical mudança nas práticas educativas.

Se, para Nietzsche, a esperança é o pior dos males, ou a última que mata, prefiro acreditar que os atuais estudantes universitários em posse de formação específica, de encantamento, e compreensão de que os novos recursos digitais não representam “trabalho a mais”, mas uma forma excepcionalmente brilhante de ensino e aprendizagem no transcurso dos dias! Aqui está a grandeza de um curso acerca de recursos digitais com esse foco na formação de novos educadores. A pergunta subsequente é: quantas universidades, academias têm a consciência da relevância dessa formação aos professores do século XXI? A resposta, sem verificação, dá a entender que pouquíssimas, o que mais leva a acreditar que é, ainda, um caminho longo a percorrer!


sexta-feira, 3 de julho de 2020

Sobre a pertinência do uso de recursos digitais no cotidiano...

É quase certo que todo mundo(!) dirá, sim, é pertinente, é importante e necessário o uso de recursos e mídias digitais. Com perguntas contrastantes, logo se visualizará os respondentes tergiversarem e, por um motivo muito simples: para a imensa maioria das pessoas o uso contínuo, corriqueiro e repetitivo de redes e recursos digitais é um problema, ocupa o espaço de preenchimento do vazio, desembocando num pretenso niilismo.

Pode-se afirmar que é um desafio regrado a tempo perdido, a aprendizagem do domínio que os recursos e mídias digitais causam sobre o indivíduo que as domina. Não poucos se veem completamente dominados, "viciados" no uso desses recursos.

É verdade, também, que os recursos digitais, se bem conhecidos e "dominados" podem se configurar em grande contribuição ao trabalho, ao estudo, enfim, à vida de quem os instrumentaliza inteligentemente. Nesse sentido, não somente é interessante o uso de recursos digitais cotidianamente, mas necessário, afinal, os recursos positivados, tornaram-se instrumentos de trabalho.

Profissionalmente, como supra evidenciado, os recursos digitais podem incorrer em qualificação no trabalho a quem os dominar, ou seja, o ser profissional pode ser qualificado por esses meios. A identidade profissional, portanto, utilizar-se-á de um importante recurso para sua formação e fundamentação.

Imperatriz-MA, 03 de julho de 2020

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Sargento Getúlio, a morte e a nossa fé

Há uns dias visitei meus excertos de livros que valeram o esforço da anotação. Nesta visita pelos meus rabiscos encontrei os referentes ao livro “Sargento Getúlio”, de João Ubaldo Ribeiro. O livro de Ubaldo se dá num monólogo, onde Getúlio, Sargento da polícia militar de Sergipe, um jagunço que já matara vinte, recebe ordens de um político a quem tem fidelidade, de prender um adversário do interior e levá-lo para a Capital. Neste meio tempo, esta ordem é desfeita, mas por fidelidade, o jagunço insiste em cumprir o mandato, sendo assassinado ao final de sua missão. Neste período Getúlio recorda suas aventuras diversas, falando, num constante monólogo, de sua percepção acerca de vários temas, inclusive a morte, sobre a qual queremos nos debruçar.

Citamos alguns trechos do livro, a que fazemos referência, sobre a morte:

1. Quando o homem resiste da morte não tem visagem mais assombrada [...] tem quem diga que a morte é calma. Só se for depois, porque na hora o sofrente arregala as vistas e se segura no que achar, como quem se segura na vida. E se revira e range os dentes e levanta a cabeça e puxa o ar e busca conversa e espia os lados e fica retado porque todo mundo não está indo com ele e arroxeia os beiços e faz que senta e se esfrega em tudo e se baba e se bate dos lados e olha duro para as pessoas e dá gofadas e fica com pena dele mesmo e estica as pernas e se treme todo e faz cara de medo e se destorce e faz barulhos e se bufa e se borra e grita e pensa naquilo que nunca fez e pede a Deus nas alturas e chuta o vento e estica a roupa e incha o peito e no fim faz uma força e revira os olhos de modo medonho e dá um arranque para cima e vai embora no seu caminho, que o dia de nós todos vem [...] Mas ninguém gosta de ir, isso é conversa de padre (p.23-24);

2. Morrer é como que dormir e dormindo é quando a gente termina as consumições, por isso é que a gente sempre quer dormir. Só que dormir pode dar sonhos e aí fica tudo no mesmo. Por isso é que é melhor morrer, porque não tem sonhos, quando a gente solta a alma e tudo finda. Porque a vida é comprida demais e tem desastres [...] Quem é que agüenta esse peso, nessa vida que só dá suor e briga? Quem agüenta é quem tem medo da morte, porque de lá nenhum viajante voltou e isso é o que enfraquece a vontade de morrer. E aí a gente vai suportando as coisas ruins, só para não experimentar outras, que a gente não conhece ainda (p.99-100).

3. Estou sentindo, eu disse, essa vida é uma bosta. Puxei ar: quem está vivo está morto, a verdade é essa (p.137);

4. O pior que pode me acontecer é eu morrer e isso não é o pior. [...] Pior é não ser ninguém (p.138);

5. “A coisa que mais tem é morte, e o mais certo que tem. Desque nasce começa a morrer. Tárcio dizia: eu só faço os buracos, quem mata é Deus” (p.37);

6. O seres humanos são as galinhas de Deus, porque Quando menos a gente espera, Deus pega um e torce o pescoço e não tem chororô (p.11);

Teçamos uns breves comentários a partir das expressões de Getúlio, de Ubaldo Ribeiro:

1. “E vai embora em seu caminho, que o dia de nós todos vem... mas ninguém gosta de ir”. Pode-se dizer que há uma crença de que se vai para algum lugar depois da morte, posto está que se fala de um “caminho” e este só existe para direcionar a um lugar.

2. Dormindo se esquece as “consumições”, ou seja, desgostos, apreensões, inquietudes. No entanto, essas “consumições” podem retornar em sonhos, certamente pesadelos para quem já tinha matado mais de vinte. Então, melhor do que sonhar é morrer, o que impossibilita qualquer aflição. Mas melhor mesmo do que se arriscar no desconhecido da morte, é viver enfrentando os “desastres” da vida. Parece que há a crença em algo depois da morte, mas, no entanto, não tem segurança no que será. Diante do medo da morte há também o medo de não ser ninguém enquanto em vida, assim, “pior do que morrer é não ser ninguém”.

3. Desde que se nasce já se começa a morrer. Essa afirmação mostra um pensamento mais negativo que positivo da vida, embora se possa chamar de uma constatação óbvia. Getúlio era matador, mas afirma que é Deus quem “torce o pescoço”, tira a vida de quem ele atira. O poder de tirar a vida é de Deus, pensa o jagunço, sem perceber que a isso se junta sua ação violar tal vida.

Nas afirmações do personagem de Ubaldo, encontramos a síntese de um pensamento bem generalizado sobre a vida, a morte e a realidade pós-morte: viver parece ser mais sofrimento do que alegria. Acredita-se numa realidade positiva após a morte, porém, é um acreditar que muitas vezes é questionado; há uma compreensão de que o dia da morte de todo ser humano chegará, no entanto, há uma não aceitação da morte. Talvez por isso se possa explicar a imensa quantidade de orações para os mortos nas missas; se possa explicar a presença massiva nas missas de sexta-feira santa, o que não ocorre em domingos de Páscoa.

Bem, me empolguei. A única intenção destas divagações era comentar o fato de que na Igreja lembramos demasiadamente os mortos, e pouco falamos dos vivos, pouco festejamos os nascidos, os que celebram bodas, os que estão felizes.... E quero dar o exemplo dos meus primeiros sete minutos da última missa que participei em Estrela: todos lembrando mortos e o leitor cuspia as palavras rapidamente, em razão das tantas intenções. Até parece que na fé de nossos crentes, se os nomes dos falecidos não forem citados, Deus não os identificará. Certamente porque Ele é desatento, só pode! Não há outra explicação! Bom, não acredito nisso! O problema está na forma de evangelização que, ao que parece, deu pouca ênfase à vida, à importância da comunhão entre os vivos, à importância de se entre-ajudarem para terem uma vida saudável e digna. A realidade do pós-morte não pode ser mais importante que a realidade da vida dos filhos e filhas de Deus, pois é aqui que o Reino de Deus se faz constantemente no já e ainda não de cada dia.

BIBLIOGRAFIA: RIBEIRO, João Ubaldo. Sargento Getúlio. São Paulo: Folha de São Paulo, 2003.

José Heber de Souza Aguiar, Estrela, 09/08/2010

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Uma história de dor

Conheci uma senhora. Sessenta e dois anos. Parecia ter setenta e cinco, pelo rosto, expressão de sofrimento, dor. Parecia ter vinte, pela ingenuidade, imaturidade e, também, dor. Não a dor de uma mulher vivida que tivera um genitor que nunca cuidou dela, abandonando-a com cinco anos. Um genitor covarde que tentara abusá-la sexualmente. Não pelo fato de ter sido adotada por uma família que não podia ter filhos. Não por criar um filho que vive tentando se matar bêbado ao volante, dizendo que não tem mãe. Não por isso. Por isso, não! A dor dessa mulher sofrida é a dor da morte!

A primeira coisa que essa mulher me disse foi que precisava de ajuda para ajudar. Isso mesmo! Ela, que tanto carece de ajuda, não queria ajuda para si. Queria ajuda para o filho. Um pobre filho, falando de condições financeiras. Um rapaz pobre de vinte e cinco anos que não aceita ser pobre. Quer um carro, precisa de um carro, não vai viver sem um carro, mas vai morrer com um carro, concluí hoje... Já se acidentou três vezes embriagado ao volante. Ele só a terá por mãe quando conseguir um carro...

Conheci uma senhora, hoje. Uma senhora triste, como muitas outras senhoras tristes, uma senhora sofredora como muitas outras senhoras sofredoras. Uma senhora com a cara da dor. A dor tem a cara dela.

Seu filho já se empregara duas vezes, contou-me ela, mas pediu demissão para ter dinheiro para comprar o sonhado carro, o carro que bateu e que foi guinchado e está preso até hoje. Foi sempre um funcionário promissor, dedicado, responsável, contou-me também ela, mas seu sonho é seu carro. E só!

Fiz hoje o que não fazia há tempos. Parei uma hora e meia para ouvir as dores de uma pessoa. Nunca me senti tão bem por ouvir essa senhora. Ela falou tanto, tudo, contou o que lhe machucava, suas dores, tristezas, frustrações. E, ao final, levantou-se mais leve, flutuava... Consegui convencê-la a ir a um psicólogo, convenci-a a convencer o filho a também ir a um psicólogo. Ela foi feliz por algum tempo... E o psicólogo que os ajude a se ajudarem... E ai dele se não o fizer!

Quantos anos ainda pode viver uma pessoa de sessenta e dois anos que sofreu toda a vida? Temo a resposta, temo pensar que essa senhora possa sofrer tanto mais que o  já sofrido. Isso corta-me a alma. Sem pai, sem mãe, sem ajuda, quase sem filho... Bom, mas ainda tem Deus. E em Deus ela crê muito, Deus é tudo para ela, é em Deus que ela põe todas as suas forças. Para variar, sempre fica tudo para Deus resolver. Que assim, seja! Mas que Deus não demore mais sessenta e dois anos. Deus, por favor, dê a primeira ficha de atendimento para essa senhora, porque esse caso é para ontem!

José Heber de Souza Aguiar, Estrela, 04/08/2010

terça-feira, 3 de agosto de 2010

In Vino Veritas

Ainda ontem disse a um amigo que para se tomar uma decisão importante pela seriedade é preciso fazê-lo num dia após tomar um porre de vinho. Meu amigo, no entanto, retrucou afirmando que precisaria da razão para poder tomar uma decisão séria. Já havíamos tomado uns bons goles de vinho e falado sobre o que é racional. Não me aquietei com a resposta dele e procurei afirmar automaticamente que após o tal porre se está mais racional que em outros momentos, pois é quando se pode tomar uma decisão sem se valer tanto pelo que não é racional, pelos desejos, instintos. Não queria dizer que para pensar algo sério seria necessário o dia após o vinho. Com minha afirmação queria eu dizer que para assinar uma decisão já pensada e refletida, mas a qual não se teve coragem de assinar, de fazer acontecer, seria importante fazê-lo depois de um porre.

Tomamos ontem um bom vinho! E hoje é domingo. E domingo não se precisa acordar cedo. Eu não acordo cedo, geralmente. Sempre vou à missa antes do meio dia. Hoje não fui à missa antes do meio dia. Minha cabeça doía. Quase explodia. Literalmente eu não tinha condições de pensar nada que fosse sério. Decidir por algo já pensado eu conseguiria, sim. Minha tese estava confirmada.

Hoje eu estava cético. Há muito tempo não me pegava tão cético como hoje. Pensei sobre quase todas as coisas do mundo! Não eram coisas sérias, então pude pensá-las. Somente hoje fui político, fui pai, fui amante, fui monge, fui ateu, fui cangaceiro, fui poeta, fui filósofo, fui um lixo. De tudo que fui continuei sendo o mesmo de todo dia: um nada! Nunca estive tão niilista como hoje.

Hoje eu não estava bem, talvez por isso mesmo fui tantas coisas. Queria ser mais do que sou, para me sentir melhor. Não estava mal por causa do vinho, confesso! Tenho andado cansado, estressado!

Tenho estado angustiado com a vida humana, com o sentido de viver para tanta gente. Trabalho com pessoas e vejo-as diariamente brigando por coisas fúteis, fingindo ser o que não são para serem aceitas nesse mundo de falsas faces.

Agora já são vinte e três horas. Depois que eu escrever essas angústias para não esquecer que um dia as tive, vou deitar e dormir. Espero amanhã acordar inteiro. Infelizmente espero estar menos cético. Preciso acordar religioso, mais esperançoso, mais humanista! E quando o estresse me derrubar outra vez, voltarei a tomar uns goles de vinho para que eu possa ver a possibilidade de ser outras coisas outra vez. Quando o cansaço me vencer vou viajar em busca de uma nova verdade. Ainda que eu não a encontre vai valer a busca, o percurso, o caminho. Se é a absoluta verdade, não sei, mas é a verdade que só posso encontrar após o vinho!

José Heber de Souza Aguiar

Canoas-RS, 04/10/2009

José

(IMAGEM: José Heber de Souza Aguiar, 03/08/2010)

São sete horas da manhã. Minha casa é fria. Meu quarto é quente. Pus-me cedo de guarda para melhor viver. Precisamos de horizontes, mas viver na horizontal não é lá a melhor coisa. É tão cedo para mim que tenho todo o dia para deleitar-me em livros, teses, idéias malucas de malucos que parecem nunca ter acordado para a vida. Estou de pé, desperto, mas é como se ainda estivesse sob os meus trinta quilos de cobertores (sim, há certo exagero nesse número!), é como se não tivesse acordado. Afinal, não tenho a Maria e o João (se os tivesse não teriam esses nomes) para por a banhar, levar à Escola, alimentar, Amar, Cuidar... E tudo o mais de obrigações que tem um pai de família.

São sete horas da manhã e essa cidade gélida não faz jus a seu nome: Estrela é fria, terrivelmente fria. Terei eu acordado sobre uma montanha de neve de algum país nórdico?

São sete horas e eu em meu quarto quente a fitar através da janela de onde grita incansável, um martelo também frio, suspenso por uma mão fria de um corpo esguio, que muito bem se esconde sob tantas roupas e luvas e pitadas sôfregas num cigarro desgastado. Será um Pedro? Um Antônio? Um Francisco? Quem sabe... O certo é que é um pedreiro que não tem a opção de ficar num quarto quente de uma casa fria, pensando sobre a crueldade do frio para dizer que hoje Deus amanheceu preguiçoso. Pensando bem, pode se tratar de um José. Um José da Silva? Há tantos Josés da Silva neste Brasil que é muito possível que esse seja mais um. Se bem que em Estrela não há lá muitos Silvas.

São sete horas de uma manhã gelada e o nosso José não sei de que (será mesmo da Silva?) usa, incansável, seu martelo. De seu rosto escorrem gotas de suor que, gestadas espremidas do calor sofrido de seu corpo, padecem frias... No que pensará esse José? Na Maria? No João que tem brigado na Escola? Na conta de luz com o prazo de pagamento vencido? Na mulher que exige há meses mais um cômodo na casa? Ou pensará em Deus que o ajudará a melhorar de vida, afinal, está trabalhando tão cedo, neste frio de um grau. Se Deus ajuda a quem cedo madruga, haverá de não esquecê-lo... Pobre José, pai da Maria e do João, parece não perceber que suas orações às sete horas de um dia frio, não são ouvidas. Deus tem expediente, José!

São sete horas da manhã e eu num quarto quente de uma casa fria, assistindo ao meu xará José com uma vida quente numa manhã tão fria, pensando em Deus, que bondoso é sempre, mas não acordou cedo hoje e não ligou o climatizador da terra para o lado de cá do globo. Em compensação, tem um José, pedreiro, se queixando do excesso de calor que faz do outro lado... Agüenta aí, meu pai, que não demora muito Deus acorda!
José Heber de Souza Aguiar, Estrela-RS, 03/08/2010

terça-feira, 8 de junho de 2010

Jovens, Chamados a Colaborar com Deus para a Promoção da Vida*

“Por que existe tanto sofrimento no mundo? O que Deus quer de nós?” Estas são duas das diversas perguntas que permeiam o livro “Diálogos Noturnos em Jerusalém: Sobre o risco da fé”, no qual o Cardeal Carlo Martini e o Padre Georg Sporschill, dialogam com jovens, respondendo às suas indagações e dúvidas. Trata-se de um texto ousado e esclarecedor, quanto aos questionamentos mais freqüentes da juventude em relação a Deus, à Igreja e à missão do ser humano num mundo multifacetado.

É comum os jovens questionarem a existência de Deus e a missão da Igreja, alegando que, se Ele existe e é o criador de tudo, é mau, porque é também o criador do sofrimento. Ao porquê da existência do sofrimento no mundo, Martini e Sporschill (pp.17-19) respondem, tomando como ponto de partida, a afirmação da liberdade humana. Deus, em seu ato criador, deu ao ser humano a liberdade, mas ele nem sempre a usa para o bem, criando, por vezes, males. Ora, se Deus não concedesse ao ser humano a capacidade de escolher ele seria um Deus ditador. E Deus é amor, ama sua criação e a quer livre. A pergunta pelo que Deus quer de nós é assim respondida pelos dois religiosos: “Deus quer pessoas que contem com sua ajuda e seu poder. Essas pessoas podem mudar o mundo, especialmente o sofrimento e as injustiças, para que o mundo se torne tal como Deus o criou, como Ele o quer: cheio de amor, justo, bem cuidado, interessante. Para isso Ele nos quer como colaboradores” (p.23).

Num mundo que sofre com tantas injustiças criadas pelo ser humano, Deus quer colaboradores que, fazendo uso de sua liberdade para o bem, possam contribuir para que o mundo se torne melhor, mais humano, mais cheio de amor, mais feliz. De nada adianta a pergunta pelos culpados de tanta injustiça no mundo se esse questionamento não levar a uma ação capaz de transformar tais injustiças em bem. Deus nos convida e nos quer seus colaboradores e podemos sê-lo onde estivermos: como estudantes comprometidos com a vida humana, como pais e mães de família que amam e zelam pelos seus filhos, formando-os solidários e éticos, como jovens que assumem a vocação religiosa ou sacerdotal, e, por sua vocação, dedicam sua vida ao trabalho missionário das formas mais diversas. Todos somos chamados a cuidar da vida, essa é a nossa vocação.

Referência Bibliográfica: MARTINI, C.M.; SPORSCHILL, G. Diálogos noturnos em Jerusalém: Sobre o risco da fé. São Paulo: Paulus, 2008.

Estrela-RS, 08 de junho de 2010.
*Por Ir.José Heber de Souza Aguiar, FSC Jose.heber@lasalle.edu.br
Escrito para o Jornal Integração, da Diocese de Santa Cruz do Sul, mês de Julho, no espaço da Pastoral Vocacional.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Sobre a Hidrelétrica de Belo Monte e a Exploração de Vidas









Quando criança, ganhei muitas broncas de meu pai pelo fato de ligar e desligar as lâmpadas de casa por mera diversão. Gostava de ver o acender e o apagar das luzes durante o dia como adorava fitar, encantado, o piscar dos vagalumes, quando faltava energia em minha cidadezinha, à noite! Motivo das broncas? O exorbitante valor da conta de energia! Anos mais tarde, quando adolescente e, depois, jovem, continuei sob as clássicas e duras reprimendas de meu pai, ainda por causa da temida conta! Ora, à noite, ligava as luzes e acorria aos livros, e lá estava eu contribuindo com uns reais a mais no talão de energia! Em razão das insistências de meu pai no uso reduzido daquela lâmpada sobre minha cama, eu tinha dois conflitos constantes: não entendia porque meu pai, ao invés de me incentivar à leitura, me desanimava; naquela altura, mais grave que isso, não compreendia porque com tão poucos eletrodomésticos em casa pagávamos um valor tão alta pelo uso da eletricidade.

Por muitas e muitas vezes me peguei com muita raiva, não de meu pai, porque havia aprendido a me colocar em sua situação, pelos poucos recursos que tínhamos. A raiva mesmo era do exagero na conta de luz. Aí compreendia a necessidade de estudar para poder entender as injustiças e transformá-las em bem. Em minha mente fértil em fantasias, até imaginava que era estratégico o absurdo da conta e fantasiava que o valor da energia das famílias pobres era altíssimo para que os pais cortassem o tempo a mais de estudo dos filhos afim de que eles, pobrezinhos, não estudassem e não pudessem reclamar a exploração. Isso me fazia ficar com mais raiva ainda. Por muitas e muitas vezes deixava de ler porque esses conflitos me tiravam a concentração. Não poucas vezes ficava me imaginando lá no escritório discutindo com o diretor da Celpa (Centrais Elétricas do Pará) por causa da conta: "Seu infeliz! Por causa dessa exploração não posso estudar direito, meus pais tem que trabalhar mais que o normal para manter a conta em dias. Vocês nos roubam!" Era só e tudo o que queria dizer. Na certeza ingênua de que era estratégica a falta de energia me via cada vez mais motivado para estudar e ter como ir colocar “na linha” o diretor da Celpa. Quanto à transformação do cenário, minha mãe nunca incentivava, pois não valia a pena brigar por isso e suportava quieta. Meu pai ensaiava reação, mas não executava.

Cresci na realidade de exploração de um Estado que tem a imensa hidrelétrica de Tucuruí e, ainda assim, cobra caríssimo pelo pouco de energia da qual seu povo faz uso. Em contraposição, empresas mineradoras usufruem da energia a preço baixo ou nulo dessa referida usina que, quando de sua construção, mexeu com as vidas de muitas famílias, mudando suas trajetórias para um futuro infeliz! Nessa realidade, a seguinte afirmação não se trata de senso comum, mas de realidade incontestável: “Ao fim de tudo, quem sempre paga a conta é o povo simples!” Na região onde será construída Belo Monte, não haverá exceção e isso já se observa pela forma como foi induzido (e não conduzido) o processo de aceitação da gigantesca obra! As pessoas que lá vivem já são exploradas há anos. Sendo eu conhecedor desta triste realidade, como me fazer acreditar que o benefício desse empreendimento irá para os pobres, para o progresso dessas pessoas, seu desenvolvimento?

Cabe aqui um breve comentário sobre a situação da precária Transamazônica (trata-se da BR 230, apelidada de “Transamargura” pelos habitantes da região), Rodovia Federal que atravessa o Pará, e que assiste pesarosa ao sofrimento de milhares de pessoas que não podem por ela trafegar com agilidade para salvar a vida de seus entes, para transportar alimentos e abastecer as cidades, enfim, para se integrar à Região Norte e ao Brasil, de acordo com um dos objetivos de sua construção pelos militares que lá despejaram famílias de várias regiões do Brasil, na década de 70, sem nunca prestar-lhes verdadeiro auxílio. Até desconfio que não asfaltaram a “Transamargura” para nos fazer engolir a tal da barragem de Belo Monte, quando, enfim, quisessem construí-la a todo custo. É com muita dor que constato que é isso que está acontecendo: meu povo, toda a vida explorado, está se deixando engabelar pelo projeto da Hidrelétrica, sem questionar os benefícios reais a eles. Até parece que pelo fato de sempre terem sido explorados e nunca terem sido lembrados pelos governos, se satisfazem com as possíveis migalhas que lhe restarão.

Que fique bem claro: não sou contra o progresso. Sou a favor do desenvolvimento! Sou contra o fato de que as pessoas não são beneficiadas de verdade com o desenvolvimento, em razão de projetos mal realizados, que não desenvolvem realidades fazendo-as melhores! Com Belo Monte haverá o “mais do mesmo” de projetos frutos de imposição. Há muita gente que vai morrer, comunidades ribeirinhas e indígenas junto com sua natureza irão desaparecer, histórias não mais serão contadas... Quem está interessado nas histórias das vidas dessa região? Os fins não éticos mais uma vez não justificarão os meios não éticos? Não se trata de um progresso sem ordem esse processo impositivo de construção da barragem? Progresso para quem mesmo? Em menor ou maior grau, há muitas famílias sofrendo com os exorbitantes valores que pagam pelo pouco de eletricidade que usam numa terra que gera muita energia; há famílias perdendo suas terras para conglomerados de plantadores de soja; há famílias que veem os seus morrerem à míngua à margem de uma Rodovia Federal não asfaltada, etc. Há muitas e muitas histórias que não são contadas por quem deseja impor a construção de Belo Monte. É por conhecer e ser parte da história dessa região que não aceito sua construção da maneira como está projetada. A história de vida dos povos do Pará, nas suas mais variadas faces, Belo Monte alguma paga, supre, compensa! Que isso fique claro, sem possibilidade de contestação!
José Heber de Souza Aguiar
(Dedicado a meu tio, Francisco Márcio de Souza)
Estrela-RS, 18 de maio de 2010

quinta-feira, 18 de março de 2010

Sobre o Valor da Vida

Nunca encontrei alguém que tivesse pedido para viver, antes de nascer, ou mesmo alguém que tivesse pedido para nascer e, depois, muito logicamente, viver. Decididamente: não solicitamos nascer! Não solicitamos viver! Mas já que nascemos e vivos estamos que ao menos nos tivessem ofertado essa danada vida em quatro nada suaves prestações: o nascer, a juventude, a meia idade e a velhice. Pensando bem, que a última prestação existisse por conveniência, ou, então, que ao menos pudéssemos calotear Deus para fugirmos da dureza dela.

A vida, essa apressadinha, ao aparecer metidamente na terra e, logo, já sem agüentar ser levada, quer ela mesma andar, depois falar, depois decidir, depois não mais decidir e nem mais exercitar sua sina de apressadinha, quando não mais dá as caras e, ponto final, dá no pé! Desgraça para o morto (alegria para uns malucos insatisfeitos com a riqueza de viver), mais desgraça para os amigos do morto, e mais desgraça ainda para os parentes do morto. É desgraça pra tudo que é lado, banda, horizonte, direção! O que resta? Um corpo inerte, que em menos de três dias, diferente dos tantos inúmeros anos, já se torna insuportável, pútrido, fétido. E tão logo é metido num buraco de 1,40 de fundura - os tais sete palmos que nunca dão sete direito ou dão mais, sempre, dependendo apenas das mãos do coveiro e do tanto de cana que bebeu, pois não conheço um sequer que não goste de uma birita braba!

Mas é verdade incontestável: não conheço quem diabo tivesse pedido para nascer, e viver. Aí está a angústia de uns revoltados, que não conseguindo dominar a sede de viver da própria vida, reclamam o direito que têm em razão de terem sido forçados a aceitarem uma vida que nem sequer pediram. Mas creio, é veredicto e não duvido: há quem reclame pelo fato de nem ter nascido. Pobres e inocentes abortados!

Para ser bem honesto e tornar mais respeitável nossa prosa, observemos o progresso da ciência e façamos uma fezinha para lembrarmos que a psicologia, ciência nova que tem pouco mais de século de afirmação, fala sobre o desejo do ser humano de querer nascer, viver e, por que não, morrer? Segundo essa ciência, o ser humano deseja nascer, sim, quando no útero se sente amado, querido e acolhido pelos pais. Mas aqueles que gerados, por sentirem que não são aceitos pelos seus genitores morrem no útero ou nascem com problemas físicos ou psicológicos para se colocarem contra eles. E os bobos que lhes deram vida sem que essas vítimas da vida indesejada pedissem terão que gastar sua própria vida depois lhes dando atenção, carinho, amor e afeto em maior quantidade. Bem, pode até ter sentido esses estudos, mas uma coisa é certa: não conheço quem tenha pedido para ser gerado. Aí a psicologia não me pode ajudar muito.

Ah, vida! Desgraçada! Bandida! Opa, baixaria não! Baixo calão zero aqui, pelo menos aqui, já que no resto da sociedade do mundo, a fineza da educação é algo raro, raríssimo, até! Não consigo entender como seria a dor da perda! Perco a educação e para mim parece algo tão simples, indolor..., não ter essa coisa que chamam educação, que se resume na tragédia irônica de ser apenas um “não ser fino”, que não usa o mecanismo da alta finesse, palavras desgraçadas, sem charme e chatas, isso é o que se chama de mal educado. Baixaria! E, de novo!

E como pedir para nascer? Quem nos dá vida, pensa que a queremos por não nos poder ouvir? E como sabem os que tiram a vida, abortando sonhos, que os neo-desfuturados não queriam viver? Nunca encontrei quem tivesse pedido para viver. Mais sério que isso: nunca encontrei um desses abortados que não tivesse pedido para viver. Quão dura a vida e tudo que nela há. Que mais é a vida do que a fina ironia das interpretações entrelinhas? Diante dessas dúvidas só nos resta blasfemar, xingar os humanos pútridos é fétidos que em nome do prazer abortam a beleza do ser a quem nem se permite ser. Nunca vi quem tivesse pedido para nascer. Pedido para morrer, nunca verei, e as almas caladas sem antes dissessem seus desejos me fazem xingar. E como serão os velórios sem os velhos conhecidos deitados sobre uma mesa e os íntimos comentando as histórias com o falecido, história sempre de glória, embora raríssimas vezes foram de glórias mesmo. Como tiramos cada vez mais essas possibilidades de gargalhadas e cafezinhos nos velórios. Vou sentir falta disso. A criança desfuturada da vizinha não vai me permitir essa chance. Que merda essa vida e tudo que nela há!

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Sobre a Loucura da Deseducação

Fernando Pessoa poetizou:

Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?


Se viesse prestigiar a realidade da educação hoje, certamente observaria:

“Que louco esse mundo e tudo o que nele há:
os estudantes vão para a Escola e não estudam
e não se interessam e não aprendem.
Uma coisa aprendem, e só:
a lição que seus pais aplicam
ao professor que “dá” nota baixa aos seus filhos perseguidos:
que louco esse mundo e tudo o que nele há!”


É, Pessoa, o negócio é não cair de bobeira, como professor, por aqui. E, se cair, é melhor se cuidar muito bem!

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Especulações do ser finito sobre o Infinito

A imensidão do infinito não me consola. Vivo embasado em parâmetros e por eles calculo meus passos. O ideal é a constante referência de meu agir. Tenho modelos intocáveis, mas não sei dizer se podem se chamar de divinos ou de coisa que o valha. Procuro a forma perfeita da perfeita fórmula. Procuro o ideal do ideal. Tenho a sede insaciável de buscar a fonte de inspiração do poema mais perfeito. Meus poemas nem poemas são, pois não são perfeitos. Não sou mais que rascunho de um ato criador, pois não me consigo ver como a imagem e semelhança do ideal do ideal, como o reflexo do Supra-sumo, do perfeito. Nem poeira soprada ao infinito me considero, pois existir algo na imensidão de toda a imensidão é pretensão demasiada grande até mesmo para a mais insignificante partícula de nada que sou. Minha cabeça explode a cada dia que passa e percebo que as rugas caminham cada vez mais por meu rosto. Meus cabelos pretos de outrora já perdem espaço para os fios brancos que me dão a cada dia a consciência de que meu tempo passa e que a morte se achega. Não quero a morte! Não quero morrer antes dos noventas anos! Preciso descobrir se valeu a pena abraçar ideologias e acreditar em sonhos. E se eu descobrir que não valeu a pena, que ninguém saiba e que o epitáfio em meu túmulo roto também o esconda. Quero que a frase mais bonita e motivadora esteja lapidada sobre meu corpo carcomido pelos vermes a ganharem vida. E caso eu descubra que não valeu a pena ter sonhos ao menos terei a certeza de que a ilusão do ideal sustenta uma vida, envelhece um corpo, mantém um ser humano firme no propósito da felicidade. E é essa uma nobre causa que deve ser alimentada. Ao fim de tudo temo descobrir que a vida é um enganar-nos constantemente com o divino propósito de chegarmos à velhice, à plenitude da vida, à Morte, sem mistérios a serem desvendados em outras dimensões!

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Pensamentos e ações num dia desses de aniversário longe da terra amada

Acordar pela madrugada, organizar as já menos de vinte e quatro horas para que o tempo pouco dum tal dia esperado - em trezentos e sessentas e todos os que ficam faltando para completar um ano -, possa não atrapalhar a espontaneidade dos acontecimentos. É assim o dia de um concluinte de graduação, aspirante a mestrado e coordenador de turno - ou prefeito de disciplina, como se dizia uma vez.

Acordar às quatro horas e lá se vai um monte de tempo da madruga, preparar o chimarrão, pôr-se a estudar e depois das obrigações matutinas, ligar para a mãe: programa de aniversariante, esse? Sim! E é o meu! Tem sido o meu! Durante muito tempo entendi como obrigação de minha mãe cuidar de mim, me gerar. Ao me afastar dela, para estudar muito distante aquém do além do não se sabe onde e o quê, mudei de compreensão e ligo sempre para minha mãezinha para agradecê-la pela paciência que teve comigo em seu útero, e mais: por ter sido fiel a mim, cuidando para que eu nascesse e me criasse. Minha mãe merece mais que isso, pois poderia ser eu mais um falecido das estatísticas nacionais de aborto, lá da década de oitenta.

Completei hoje cinco lustros natalícios, um quarto de século, como tenho dito para dar impressão de enorme quantidade de tempo. Não passo, e isso já é muito, de um piá não pançudo das terras celestiais do Norte aqui nas bandas esplendorosas do Sul. Um guri amazônida que nem sabe nadar direito, mas que reconhece a cada dia e ano que passa a gratidão do ser mulher de minha mãe; a mulher frágil, mas firme, que me gerou me criou e me amou. Isso é muito, mas minha resposta a esse amor está longe de significar um pouco de tudo que ela fez e continua fazendo por mim. Não esqueci de meu pai nessa conversa! Ele é o esteio de minha mãe, o espírito questionador que a faz pensar e repensar os rumos... O que não é pouco, e o tanto que é... É de se admirar!

José Heber de Souza Aguiar, canoas, 26/06/2009: Meu aniversário de 25 anos

A Celebração que exclui

Retornei há pouco de uma missa numa capela muito bem ornamentada, mesmo com uma estrutura bem precária. Tratava-se de celebração para fechamento de um tríduo, numa comunidade simples, mas com um ambiente agradável: fiéis, altar com flores, imagens de santos, uma cruz, um padre e a Comunhão, Santíssima Redentora, Corpo e Sangue de Cristo. Todos os cristãos que, na missa se encontravam, procuravam alimentar-se da comunhão fraterna, da partilha de vida, do sentimento de inclusão no mistério salvador de Deus. Todos buscavam ser ouvidos por Deus, e ouvidos se sentiam por meio da presença viva da comunidade, do calor cristão, da efervescência da fé nas partilhas de vida. Deus ouve quando os seres humanos, em comunhão, partilham suas situações de vida e suas esperanças.

Na missa de hoje, momento de sentimento de acolhida e inclusão, senti-me traído como o próprio Cristo deve ter se sentido. Um homem de aproximadamente cinquenta anos, mas já velho, cansado, desiludido com a vida e alcoolizado, entrou na Igreja pelo fim da Homilia. Em seus braços, mãos, dedos, pele, rosto, estavam estampados o sofrimento puro. Em sua vida de homem sofredor, morava a exploração, o desrespeito à vida.

Tal senhor, ao entrar, sentou-se e começou a prestar atenção nas brilhantes palavras do padre que em seu ardor missionário, no afã da conversão de seus fiéis falava muito e falava bonito. Não disse antes, mas o tema da celebração era a “Eucaristia como Símbolo de Transformação Social”, o que era perfeito para uma bela celebração, pois ao encontro das necessidades das pessoas que ali estavam e do homem que chegara depois. E o padre falava mal da corrupção, roubo, violência, morte. Todos concordavam e ouviam atentos. Mas tudo parecia tão distante deles. O senhor que chegara depois, disse:

- Mas, padre, isso é coisa do diabo. O senhor tem que falar coisa de Deus. Esses políticos são demônios.

O padre perguntou:

- O que o senhor disse?

E o homem respondeu:

- Eu sou diabólico!

Com essa afirmação, o padre pediu, então, de modo grosseiro para que o homem ficasse calado a fim de que ele pudesse dar prosseguimento à Santa Missa. O senhor insistiu, mas o padre, em atitude de desprezo, sufocou a fala do bêbado.

Chamaram-me atenção as palavras do “bêbado”, quando afirmara que os políticos são demônios. Por que ele teria feito tal afirmação? Para o bêbado eram demônios, sim. Sua situação de explorado e de marginalizado só podia ser culpa do demônio da politicagem que desvia dinheiro, que mata pessoas, que rouba, que corrompe, que mente, que ilude. Mas por que aquele pobre homem disse que era diabólico? Fiquei encucado. Então entendi que ele era diabólico porque assim era visto na missa: entrou sujo, estava bêbado, sentou junto às pessoas, e ainda falava besteiras. Só podia ser diabólico, pois estava incomodando quem ouvia as belíssimas palavras do padre.

Tendo-se calado o homem, a celebração continuou, e passamos à oração eucarística e à consagração. Depois das orações, todos nos colocamos em fila para recebermos o corpo e o sangue de Cristo. O homem ficou sentado em seu lugar por um tempo, depois se levantou e foi ao encontro do Cristo que o esperava de braços abertos. O homem dirigiu-se a Ele, calmamente, sem tocar em ninguém, pois as pessoas não se aproximavam dele, para não pegarem o demônio. Ao aproximar-se a Cristo o homem buscava ser acolhido, buscava sentir-se gente. Sabia que o Cristo que morreu por um projeto de libertação dos excluídos, pobres, marginalizados, não ia decepcioná-lo, não ia lhe recusar as dores e sua vida. O homem tinha certeza que o único que poderia compreender suas dores seria o Cristo que tão perto o esperava. No entanto, quando o bêbado pôs-se frente a frente com o padre, teve uma grande decepção. Uma pergunta lhe tirou o sonho, lhe tirou o sabor de dignidade que o Cristo lhe provocara:

- O senhor fez a primeira comunhão?

Num gesto de desolação, o pobre homem abaixou a cabeça e saiu da casa do Senhor, da casa onde cabem todos os filhos e filhas de Deus. O Bêbado, o maltrapilho, o demônio, o antiquado retirou-se da fila e da Igreja. As pessoas se sentiram aliviadas. Eu estava na fila, próximo ao homem. Com aquele gesto, retornei ao meu lugar. Que graça teria comungar, se Deus já estava naquele momento na humilhação do homem?

Passados alguns segundos, o homem retornou à casa de acolhida de Deus e foi ter com o padre. Insistiu. Mais uma vez recebeu um não. Desolado voltou para seu lugar e foi chorar a tristeza desse encontro frustrado. Fiquei observando. O homem tornou a se levantar e aproximou-se do altar do Senhor, do altar da vida, mas não teve jeito. Consolou-se.

Sentado em minha cadeira, imbuído de sentimento de desprezo, fiquei me questionando: Por que essa cena era possível, se Jesus havia morrido por um projeto de inclusão do pobre, da prostituta, do bêbado, dos leprosos, do sem-terra, dos estrangeiros? Como a Eucaristia, símbolo de inclusão de toda essa gente podia ser transformada em expressão de exclusão, ao ser negada àquele homem? Se o Jesus histórico estivesse ali, não iria expulsar o padre da Igreja? Não iria chamá-lo de Fariseu? Não perguntaria por que estava ele zelando pela lei do Sacramentalismo e deixando de lado a lei da vida por meio do amor ao próximo? A Eucaristia é o símbolo da inclusão do ser humano. Foi o próprio Cristo que em sua vida nos ensinou isso. Cristo é a própria inclusão, a quebra de normas, de regras, de leis que desfiguram o rosto humano em razão do que está escrito e do que tem de ser cumprido, ainda que não tenha fundamento na vida. Com Jesus, a lei perdeu espaço para a vida.

Em meu cantinho, ainda de cabeça baixa, esperei o término daquele encontro. O padre fez mais algumas belíssimas orações, encerrando com o envio, e que o Senhor nos acompanhasse. Levantei rapidamente e dirigi-me à porta. Olhei para a rua, na esperança de ver aquele homem. E lá se ia. Saiu rápido da casa de Cristo. Ia numa pisada de pé angustiada, mas sem ter a certeza de que o Senhor o acompanhava. Onde buscaria ele consolo agora, se de sua própria casa fora expulso? No próximo bar, talvez...

José Heber de Souza Aguiar, 23 de Setembro de 2005.
Comunidade Menino Jesus de Praga, Vila João de Barro, Niterói, Canoas-RS,

terça-feira, 26 de maio de 2009

Guarda-Chuvas

Sempre, quando criança, pegava-me cantando uma música que havia aprendido, acho que na primeira série com a professora Sandra. Era sensacionalmente linda. Simples nas estrofes e atraente nos versos. E assim eu recitava: “era uma casa muito engraçada, não tinha teto não tinha nada...” Era uma música que eu amava! Gostava de suas rimas o que facilitava a lembrança contínua de seus versos. O que mais me tocava nessa música era a historinha. Imaginava, mesmo com tão pouca idade, que retratasse a história de uma pessoa solitária que morava sob um guarda chuva. Esquecia do teto, e levava em conta o fato de que não tinha parede, chão, porta, janela, endereço... Depois, já grande, entendi que se tratasse de uma espécie de ironia. O poeta – grande Vinícius! - queria retratar a realidade das pessoas que não tinham casa. Talvez um mendigo. Quando em meu Cesto de Flores, pensei a possibilidade de a letra da música retratar a realidade de um povo sofrido expulso de suas terras por grileiros e fazendeiros. Essa gente violentada era, para mim, esses moradores da casa, sem teto, sem parede, sem chão e sem endereço.

O que me perseguia sempre era a idéia do guarda-chuva. Tenho paixão por um objeto desses! Acho-os misteriosos. Penso que esse, sim, é um grande amigo de nós, humanos. Talvez até o maior! Como as pessoas, por deveras vezes, também nos trai. Esquece de nossa existência deixando-nos à mercê dos tempos e ventos. Em seu colorido hipnotizante ou em seu preto magistral esconde-se um ar de superioridade. Está acima da cabeça dos seres humanos. Protege seus corpos e seus pensamentos em sol ou chuva. Isso lhes faz especial.

Outro dia, em uma dessas manhãs, a caminho do Unilasalle de Canoas, tive uma idéia meio estranha. Era um instante chuvoso. Como eu andava com meu fiel parceiro, não sofri as intempéries daquela surpresa, presenteada pelas minúsculas gotas de água que caiam sobre aqueles reflexos tímidos de sol. Peguei-o, abri e o pus sobre minha cabeça. Segurei-o firme e pronto, já estava protegido! Ao ver inúmeras pessoas com seus guarda-chuvas das mais diversas cores, descendo a passarela da estação que me levava ao meu local de estudo, me veio um forte espírito de político. Homens e mulheres de todas as idades andavam com tamanha pressa sem darem conta do perigo que representava as pontas de seus objetos. Então pensei: “se fosse político faria uma lei proibindo a fabricação desses objetos com pontas”. Sem ocupar um desses cargos de maior efeito, dificilmente conseguiria algo do tipo. Ri de mim. Seria um projeto bem maluco! Acredito que as pessoas andariam mais tranqüilas, pois não precisariam se proteger de terríveis pontas. Pensei no sofrimento que causaria a esses parceiros. Com certeza perderiam todo o charme que as pontas lhes presenteiam.

É sempre gostoso lembrar-me desses amigos de todos os momentos. Tenho tido uma saudade especial de outra cena com esses objetos. Trata-se de episódios acontecidos em Ananindeua, no Pará. Todos os dias ao ir à Ocupação Antônio Conselheiro “dar aula”, lembrava logo de meu amigo de sol, que sempre me fazia companhia naquelas viagens. A caminho de meu ofício passavam por mim vários estudantes de uma escola vizinha. Riam de mim. Achavam estranho eu andar com meu amigo. Depois de um ano se acostumaram com a idéia. Quando eu entrava na estrada que dava acesso à sala onde trabalhava, de longe meus alunos viam as pontas de meu companheiro de estrada. Então gritavam por meu nome e vinham correndo me abraçar. Meu companheiro “tamanho família” acolhia-os com todo cuidado. Tratava de dar sombra para todos sem se incomodar.

Dentre outras lembranças das quais tenho muita saudade, recordo a falta que me fazia um desses companheiros dentro dos coletivos de Belém em dias de chuva (quase todos os dias). Havia coletivos tão velhos que entrava água em muitos deles. Quando não pelas janelas ou pelas portas era por buracos no Teto. Imaginava-me com meu amigo de chuva aberto no interior desses veículos. Com certeza faria um enorme bem para muita gente.

Ainda nesses coletivos abandonados pelo tempo, olhava pelas janelas amarrotadas de poeira. Nas avenidas principais como Presidente Vargas e Pedro Álvares Cabral, via um mundo de cores, que mesmo sufocadas pelos vidros manchados, não perdiam sua beleza. O colorido propiciado por inúmeros guarda-chuvas mais parecia um amontoado de vespas brigando. Movimentavam-se de um lado para outro. Iam e vinham por debaixo das mangueiras da primeira avenida. Ria das possibilidades de cenas com tantos daqueles em minha frente.

Em minha memória de criança escondem-se vários guarda-chuvas. Nas brechas de meus pensamentos, vez por outra, me aparece uma belíssima cena acompanhada por um desses. Gosto muito de uma em que, em dias de chuva, eu e minha irmã íamos para casa debaixo de nosso teto ambulante, para nos proteger daquele mar que desabava. Andávamos pelo menos um quilômetro e meio da Escola até nossa casa. Nesse percurso passávamos por aquelas ruas esburacadas onde as enxurradas mostravam seu potencial de voz. Cantavam em tom grave. Um som confuso entre barítono e baixo. Em nossa sorte, por vezes, passavam carros e motos que nos lançavam lama. Dava a impressão de que, quando viam pessoas sob a chuva, aceleravam de propósito e, então, se aproximavam das pessoas e lhes banhavam. Penso que sentiam prazer nesse espetáculo.

E lá íamos nós. Eu estudava na terceira série. Era fininho. Tinha o cabelo preto igual de índio. Na verdade parecia um. Devia ter uns dez anos. Já minha irmã era um pouco mais alta e tinha três anos a mais. Em seu cabelo desarrumado pelo vento se escondiam umas tímidas mechas loiras. Seus olhos verdes se perdiam sob nosso guarda-chuva. Era um pouco mais fina que eu. Isso não lhe impedia de me bater em casa, quando a mãe saia. Fazíamos aquele percurso sob nosso fiel protetor. Como esse estava em fase de crescimento, nos abraçávamos para que não ficasse nenhum de nós à mercê da chuva. Era magnífico aquele momento. Ali esquecíamos as constantes brigas de casa. Deixávamos de lado os diversos momentos que ela me batia e eu corria atrás dela com o cabo de vassoura. Não levávamos em conta os fuxicos que fazíamos um contra o outro quando nossos pais chegavam de seus trabalhos. Ali, sob aquela proteção, nos perdoávamos! Era como se fosse um confessionário, mas sem precisar de palavras, pois tudo acontecia naturalmente.

Tendo como positivas essas memórias, inculcado no delirar de minha imaginação, penso como seria, se todos fizessem a experiência do guarda-chuva. Não o objeto por ele mesmo, mas o que ele, enquanto objeto de significação pode inspirar. Seja significando - para os excluídos de nossa sociedade - casa, terra, lar, emprego, escola, lugar de perdão ou simplesmente sombra em meio a uma sociedade (de sóis ardentes) excludente que leva em conta o dinheiro ante a vida humana.

Canoas - RS, 29 de junho de 2005
(Em homenagem ao aniversário de minha irmã, Irenilce de Souza Aguiar)

Publicada na Antologia: Novos Talentos da Crônica Brasileira (Vol. 3). Rio de Janeiro: Câmara Brasileira de Jovens Escritores, 2006.

Referenciada na Pesquisa: GAZZO, Eunice M. Autores da Casa do Poeta de Canoas: os processos de memória da produção literária em busca da infância. 136f. Dissertação (Mestrado em Educação). Canoas, Centro Universitário La Salle, 2011.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Unificação da Língua Portuguesa: prós e contras, o ganho é futuro

Brasil, Portugal e os demais países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – outros seis países – entraram em acordo para a concretização da unificação da língua portuguesa. Como se trata de um projeto que já vem sendo discutido há anos, muitos especialistas vêem esse acordo com bons olhos, mas outros muitos não concordam com essa decisão. Mas afinal de contas, qual a importância dessa unificação ortográfica? Qual o pano de fundo de interesses nessa padronização da língua?

Os especialistas que apóiam a unificação da língua o fazem por crerem que com esse acordo haverá maiores possibilidades da universalização da língua, o que significa sua aceitação em constituições internacionais – como uma das línguas oficiais da ONU, por exemplo. Esses especialistas afirmam ainda que com esse acordo será facilitada a circulação de livros, principalmente didáticos, entre os países lusófonos – com isso gastar-se-ia menos dinheiro em vista da publicação de edições diferentes para os diversos países. São idéias plausíveis, mas o que afirmam os descontentes com a padronização?

Há críticas fortes como a de Cláudio Moreno ao comentar que, tendo assistido às mudanças de 1971, muitos dicionários e livros tiveram de ir para o lixo. Para esse especialista em língua portuguesa, a unificação “é uma tolice. Só países ridículos fazem reformas ortográficas”. Ainda pensando nos livros que vão para o lixo, o professor aposentado da USP, Francisco Savioli, crê que a unificação é “uma reforminha tímida... que não mexe com o essencial, mas vai provocar a queima de milhões de livros”.

A partir das críticas positivas e negativas em relação à padronização da língua, o que realmente apoiar? Vale mesmo a pena a queima de tantos livros, em nome de uma maior universalização da língua? Em nome de uma maior e melhor circulação de livros pelos países lusófonos, vale a adaptação dos oito países a essa unificação? Atrás da unificação não estariam maiores interesses, como os das editoras, que gastariam menos para fazer circular seus livros? Mas, por outro lado, não é positivo o fato de uma maior circulação das produções científicas, bem como culturais entre todos esses países?

Diante de tantos prós e contras, porque não criar, por exemplo, uma política que minimize os efeitos negativos da unificação em relação à reciclagem dos livros? Num mundo onde tudo corre para a globalização, não há como os países lusófonos se porem à margem. Parar no fator negativo da destruição de tantos livros é pensar somente no que a unificação pode significar no momento de sua implantação. Pensar no que essa unificação pode significar em longo prazo é ver o lado positivo, ver o que todos ganharemos com isso – considerando como sendo o maior ganho a universalização da língua e o livre trânsito das produções de todos os países entre si, num futuro próximo. E é em razão disso que não dá para posicionar-se contra a padronização da língua.

Porto Alegre – RS, 04 de Agosto de 2008.

As opiniões dos autores, opiniões citadas no texto, foram extraídas de artigos encontrados na Internet, por meio de sites de pesquisa.

Semáforos, estações do ano, e confusão na educação.

Em minha última tarde de domingo, caminhando pelas ruas de Porto Alegre, me peguei delirando, posto à beira-rua sob um semáforo, à espera do bendito sinal verde, para que eu pudesse atravessar a rua (não quis correr feito louco driblando o sinal vermelho, embora a chuva fosse iminente); um sopro de tempo, mas suficiente para passarem por minha cabeça alguns fatos cômicos (tornaram-se cômicos por meio da relação tempo e espaço oriunda de minhas reflexões) e que recordei do passado de criança estudante. Mas por que essas lembranças logo diante daquele bicho de três olhos que pisca de vez em quando, e as pessoas obedecem e seguem felizes (ou com raiva, se a piscada tiver sido vermelha)? Bom, tanto esse bicho de três olhos, como as quatro estações do ano estavam relacionados aos maravilhosos conteúdos estudados na terceira série. Vou explicar o triste e o cômico.

Imaginem uma escola localizada numa pequena cidade da Amazônia, onde não havia grande movimento de automóveis no trânsito (não posso dizer o mesmo das bicicletas) - o que já é bem diferente hoje-, ensinando o funcionamento do semáforo. Não que eu não tivesse o direito de aprender, mas, por favor, poderiam ter ensinado algo mais concreto e que eu não pudesse aprender em 1 minuto olhando o movimento do trânsito numa cidade grande. Confesso: o que mais me atraía em aprender “aquilo” era a chance que a professora nos dava para pintarmos os olhos daquele troço esquisito de vermelho, amarelo e verde.

Já que falei na introdução os exemplos de semáforo e as quatro estações, vou respeitar a ordem, depois me dou o direito de dar outros exemplos do trágico-estúpido-cômico. Como disse, esperava o sinal verde enquanto serenava. Aqui em Porto Alegre é primavera. Nesse tempo, faz calor, mas chuvisca. É um período bem agradável. Gente, voltemos à terceira série. Na semana posterior à aula sobre semáforo, aprendi outra grande maravilha: as quatro estações. São João Batista de La Salle interceda aí, dê uma mãozinha, dê um jeito pra ver se esse negócio muda. Onde já se viu uma escola na Amazônia ensinar as quatro estações sendo que só conhecemos inverno e verão?!

Talvez pior do que aprender sobre o funcionamento do semáforo e das quatro estações, tenha sido aprender, na primeira série, o alfabeto, usando palavras que eu não conhecia a referência concreta para observá-las. Exemplo de algumas palavras que estudei: uva e leão. Uva era referência para a vogal U; leão, referência para a consoante L. Lembrar uva fazia lembrar a vogal U, e lembrar do leão feroz recordava a consoante L. Meu Deus, tenha piedade! Santo padroeiro dos professores, interceda! Nunca vi uva plantada na Amazônia e muito menos comentários de que alguém fora atacado por um leão em nossas densas matas. Temo que alguém acredite que exista uva e leão lá (a menos que seja o animal no zoológico, e a uva como fruto de experiência em viveiros de laboratórios).

Chegam a ser cômicos esses relatos, mas antes de cômicos eles são tristes. Alguém pode comentar: “bem, mas isso aconteceu há 13 anos. Hoje é diferente”. Gostaria de crer que hoje é diferente, mas não é bem assim. Creio que a educação no Brasil conta com um grande avanço, mas, ao mesmo tempo, permanece em enorme atraso. Explico-me: em determinados lugares “o conteúdo a ser abordado” é feito de modo bem novo e seguindo princípios de inclusão da realidade dos educandos, levando em conta sua história, sua cultura. Mas ao mesmo tempo, no mesmo país, estado e, arrisco dizer, até mesmo em uma mesma cidade, é possível encontrarmos realidades educacionais bem diferentes: a arcaica educação a partir de elementos distantes da realidade do educando, e a revolucionária aprendizagem por meio da familiaridade do educando com o “objeto” de estudo.

Revolução na educação frente a metodologias arcaicas: princípios renovadores na aprendizagem frente à velha “decoreba” - uma espécie de dilema frente à dificuldade em encontrar uma linha educacional que realmente seja capaz de fazer um país de pessoas educadas no sentido da capacidade de leitura da vida, e de perceber as ideologias acopladas nos aparelhos ideológicos - só podem revelar uma certa confusão, no fim das contas. Precisamos urgentemente - antes de ensinar equações, regras da língua portuguesa, ou alfabetizar a partir de elementos que distam da realidade do educando -, de uma educação que forme para a vida, e não somente para passar no vestibular. Caso continuemos caminhando nessa, creio eu, confusão geral, nossos educandos permanecerão estacionados frente ao sinal vermelho, esperando o sinal verde da educação para a liberdade, que nunca virá.

Porto Alegre - RS, 2007.

Jornalismo e segundas intenções: A Veja, meu professor, e eu.

“Nem bem havia lido, e já havia entendido o recado”. É por aí que caminham os artigos da maioria de nossos jornais e revistas, postados diariamente com a nobre intenção de “vender” informação (e pregar determinada ideologia) sem nem permitir uma visão no mínimo razoavelmente crítica, da parte do leitor. Não é estranho encontrarmos críticas a quem profere críticas ao círculo vicioso dos jornais, bem como não é estranho encontramos mestres e doutores (não somos todos mestres e doutores em alguma coisa?) que crêem fidedignamente nas informações de nossos meios de comunicação.

Não sou pessoa formada em comunicação social, de modo que não tenho lá muita autoridade para proferir críticas acerca de jornais, revistas, etc. Mas um direito eu tenho: falar sobre minha opinião (embora não tenha sido incitado a isso na formação escolar, e muito menos o seja positivamente por qualquer meio de comunicação de alcance mais geral, no meu Brasil) e postar minha crítica livre a respeito do tema. Na intenção de alcançar o objetivo deste texto, me permitirei expor exemplos.

Uma pessoa muito boa, com quem tenho a honra de ter boas aulas de História geral (não cabe aqui citar seu nome), algumas vezes trouxe artigos da revista Veja aos nossos encontros. Nunca compreendi como negativa sua atitude, mas me sentia de certo modo agredido quando sua opinião era tal qual a da revista. Por ter o periódico uma tendência elititária clara, acerca dos mais diversos temas, não compete a qualquer professor expor tal posição sem mostrar uma visão que encaminhe a outras conclusões. Cheguei a comentar essa opinião minha ao professor, que, creio eu, pensou, naquele momento, que minha intenção tenha sido prejudicar seu trabalho.

A missão do professor não é dizer ao educando no que deve acreditar ou não, mas oferecer ao estudante os mais diversos caminhos para que ele mesmo, dentro das clarezas das informações aprendidas, decida no que acreditar e que seguir. Mas voltemos ao nosso objetivo.

Dias depois da conversa com o professor acerca da tal revista, saiu uma edição desta, acerca do filme Tropa de Elite. Havia assistido ao filme, e logo tido acesso a um artigo denominado Tropa de Elite: a Criminalização da Pobreza (a edição da revista veio dois dias depois de eu ter tido acesso a esse artigo), mostrando, de acordo com o autor, Ivan Pinheiro, a intenção fascista do filme, que objetivava colocar medo, e mais, criminalizar a pobreza; onde o filme for assistido - nas palavras do autor -, “estará contribuindo para que a sociedade se torne mais fascista e mais intolerante com os negros, os imigrantes de países periféricos e delinqüentes de baixa renda”. O autor afirma à respeito da mídia “que no Brasil, a mídia burguesa há muito tempo trabalha a idéia de que estamos numa verdadeira guerra, fazendo sutilmente a apologia da repressão. Sentimos isso de perto”. E questiona: “quantas vezes já vimos pessoas nas ruas querendo linchar um ladrão amador, pego roubando alguma coisa de alguém? Quantas vezes ouvimos, até de trabalhadores, que ‘bandido tem que morrer’?”.

Assim que li o artigo, confirmei uma velha impressão que tinha acerca da naturalização da repressão. Ouço muito a afirmação de que “bandido tem que morrer”, e não encontro respostas, pois ainda acredito que como cristãos não devíamos fazer esses juízos, pois são contra nossa fé. Afinal de contas não foi um “bandido” desses que tinham de morrer que trouxe a boa notícia, ao anunciar o Reino de Deus? Não me digam que Jesus foi uma coisa e esses que “têm de morrer hoje” são outra. Jesus mesmo foi visto com o maior criminoso de sua época.

Depois de ter tido acesso a esse texto, o professor, do qual já fiz referência, trouxe e expôs a matéria da revista Veja acerca do mesmo tema. O texto trazia uma posição totalmente contrária ao artigo que eu havia lido. Senti aí fascismo na própria reportagem, e percebi que a crítica que Ivan fazia à mídia burguesa se encaixava perfeitamente com aquela reportagem. Comentei com o professor o artigo que eu lera e que, em virtude dessa crítica, tinha outra visão acerca do filme.

Ainda sobre a revista Veja, encontrei na coluna do jornal Zero Hora de 26 de outubro de 2007, assinada por David Coimbra, um comentário que resume bem a postura dessa revista. O texto denominado “As Vejas que vi” fala de duas reportagens sobre Che Guevara realizadas, uma em 1997, e a outra em 2007. Em 1997, Dorrit Harazim, na reportagem com base em documentos e entrevistas, intitulada O Triunfo Final de Che, fala de Guevara como alguém, “bonito, destemido e morreu jovem, defendendo conceitos igualmente jovens, como solidariedade e a justiça social”. David comenta que, na Veja de 2007, intitulada “Che: há 40 anos morria o homem e nascia a farsa”, “os autores não saíram para fazer a matéria e retornaram com a convicção de que Che foi um monstro”. Che foi descrito como um ser desprezível. David se pergunta: "em qual Veja devo acreditar? Por algum motivo a Veja mudou”, diz o autor, “Falo do Jornalismo da Veja, da carne da Revista”. Essa revista “parece preocupada mais em provar seu ponto de vista do que em contar o que está acontecendo. Como, então, posso ter certeza de que a cobertura da crise no Senado não estava eivada por alguma segunda intenção, como dá a entender a edição reservada ao Che?”.

Queria que o meu professor tivesse abertura para outras possibilidades e visse que a Veja não é a revista que vai salvar o mundo e que há ideologia demais em sua “pregação”. Está bem clara sua postura nos exemplos da “Tropa de Elite” e do “Che”. E se o próprio comentário de David - que é Jornalista e se diz leitor antigo da revista Veja -, aponta essa postura da revista, o que mais falta para percebermos que existe sim uma pesada força que tenta vender idéias e pregar, além de costumes, formas de agir, senão de comportar-se na sociedade?

Porto Alegre - RS, 2007.

A uma consciência sem consciência

"A consciência da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à inteligência" (Fernando Pessoa, in: Livro do desassossego,2006, p.99).

Queria poder começar chamando-a de querida, mas não sei se você é mesmo querida. Se é, quando é, a amo, mas são poucas as vezes que a amo: a odeio quase sempre.
Que digam o que quiserem os que esta lerem. Pode parecer ridículo proferir-lhe essas declarações, afinal, onde já se viu alguém escrever carta para sua própria consciência? Ah, sim! Mas você não é qualquer consciência: é a minha tão cara consciência!

Você é a maior e a pior perseguição possível de se encontrar. Comigo não foi diferente. Quero me livrar de você, mas como isso é possível? Morrendo? Morrer não quero, embora tenha vivido todos esses anos, e a única certeza que tenho é a de minha morte. A maior pergunta nessa certeza é se quando de minha morte vou continuar com você falando-me aos ouvidos “faça isto, faça aquilo”. Será você uma consciência eterna? Deus queira que não seja eterna e que nossa relação acabe-se aqui mesmo. Basta nossa parceria nessa vida.

Quando nasci meu primeiro choro foi culpa sua. Foi então que percebi que já não estava naquele lugar tão confortável e agradável. Tive consciência de que estava em outro mundo. Era essa a primeira liçãozinha dos milhares que me daria depois, e das quais agradeço poucas. Desculpe-me por demonstrar tanto ódio e pouco amor ao seu auxílio nesses tantos anos. É que na verdade tenho tido a impressão de que minha vida seria melhor sem seus palpites. Não me refiro àqueles momentos que você me tirou das maiores dificuldades; sem sua ajuda eu estaria numa situação mais complicada hoje fazendo, vai saber o quê e onde, mas com certeza não estaria gozando a vida como a gozo.

Ah, seus conselhos! Segui-os tão à risca e hoje percebo que poderia ter feito diferente. Não ouvi minha opinião nunca. Sempre fora sua opinião. E sempre que não queria sua opinião nem a minha, e me dirigia a outra pessoa em busca de outra opinião, a última coisa que ouvia depois dos conselhos era: “siga o que sua consciência mandar”. Veja bem, sua ingrata! Foi isso que fiz. Você enfeitiçou todo mundo para que sempre mandassem eu ouvi-la? Por que fez isso? Como fez isso?
Você sempre se saiu como a certinha da história. É impossível encontrar algum erro de sua parte. Já eu, nunca tive mérito em meus atos. Todos os méritos sempre são dirigidos a você, pois sempre dizem que eu agi com consciência. Se sigo seus conselhos e o resultado final não é dos melhores, logo me dizem que agi sem consciência: você nunca tem culpa de nada, por isso chega de ser bonzinho e levar toda a culpa.

De uma coisa tenho certeza: Você é a consciência mais sem consciência que é possível existir. Como pode uma consciência ingrata como você não ter consciência de que me perturba e me deixa com a consciência tão pesada diante de suas perturbações?

Quero lhe pedir que acabemos nossos laços e que procuremos um jeito de fazer isso de modo que nos separemos o mais rápido possível. Quero viver somente com minhas opiniões. Preciso de liberdade para decidir por onde caminhar e o que seguir sem ter de contar com seu auxílio. Não preciso de consciência nenhuma que me dê ordens, dizer o que devo e o que não devo fazer. Quero viver sem consciência de que vivo, talvez assim sofra menos, porque essa consciência é dura.

Espero que essa carta faça você refletir sobre todos esses pontos e perceba o que está fazendo comigo. Não me arrependo do que lhe relato aqui nem nunca me arrependerei. Mas quero que você, ao ler minha angústia, se doa. Que doa sua consciência, consciência! Quero que se arda, se queime. Você não conseguirá fazer com que eu reveja minhas decisões como fez com Raskólhnikov de Dostoievski. Serei mais firme que ele. Portanto, deixe-me em paz e não mais me siga.

Fique bem... Longe de mim.

Do seu desgosto eterno:

JHSA

***
11/09/2008 – Porto Alegre- RS
Crônica solicitada para fazer parte de um livro, mas não foi enviada.

Filosofia barata pra coisa cara

Parei para pensar (não se pode pensar em movimento?). Por cinco minutos deixei para trás os maiores pensadores da história. Pobres filósofos frente àqueles poucos minutos que me haviam ocupado os neurônios. O princípio básico era desconstruir tudo que fora construído sobre verdades ditas inquestionáveis. Começar pelo ser humano era o caminho mais lógico. Quem é? O que é? Por que é? Para o que é? Ele é? O senso comum me deu um prato cheio de respostas fáceis.

Não encontrar respostas fixas só pode ser regra geral quando se pensa em críticas a sistemas, modelos, ou mesmo em elaboração de base de tradições, ideologias, etc. Não conheço “verdade” que não tivesse de ser atualizada (como é possível se atualizar a verdade se ela é o máximo de si?) para sobreviver à história.

O ser humano também necessita urgente se atualizar, atualizar seus princípios, atualizar as suas verdades inquestionáveis. Mesmo que não queira ele vai sendo posto frente a situações que o faz pensar seriamente sobre o que construiu. Mas o que foi construído em toda sua existência, havia como não ser construído? Não é parte de sua própria natureza, transformar? Mudar realidades? Construir artifícios?

Natureza do ser humano. Ele tem natureza? Ou ele é natureza? Ele faz parte do mundo ou é mundo? O ser humano é racional ou irracional? Ou é racional e irracional?

Nos bate à cara a urgência de cuidarmos do nosso planeta. Mas quem está dizendo isso? A humanidade inteira está percebendo que o planeta já não suporta tamanha quantidade de lixo, de destruição, de poluição. É a natureza se vingando de um ser que sempre se achou à parte dela. Como não estar acima da natureza se ele foi criado para dominá-la? Certamente foi esse o primeiro pensamento de nossos antepassados.

Foi necessário que nosso planeta começasse a dar sinais seríssimos de que já não suporta tamanha destruição para que percebêssemos que somos parte do todo que ele é, e que seu fim também é o nosso fim. A tosse tuberculosa do planeta faz-nos ver que somos natureza e que só sobreviveremos freando esse ciclo destruidor que sustentamos. Depois de muitos anos, só agora estamos assumindo que somos natureza e não algo à parte.

Assumimos a poucas centenas de anos que a razão seria o princípio que regeria o que antes era comandado pela fé (na verdade as máximas da Igreja). Se fizermos um balanço do que produziu esta dita racionalidade, veremos que todo o fruto, na verdade (de modo geral) não passou de irracionalidade. Como justificar a irracionalidade no mundo dos negócios, da política, das relações internacionais? Até que ponto essa dita racionalidade ajudou o ser humano a ser mais livre, mais humano? O dito irracional, há anos, pode ser visto hoje como a forma mais racional possível. Os valores, princípios de cuidado e de pertença, relegados pela dita razão de outrora, assume hoje a identidade de verdadeira razão, pois são os princípios que nos faltaram na história para que não chegássemos onde a dita razão de outrora (mas, “irrazão” agora) nos levou.

O ser humano que sempre se viu no direito de dominar, uma vez que se entendia como acima da natureza, tem de ser ver cada vez mais como natureza, como membro do todo do universo. Como natureza, não pode mais querer acabar com a natureza da qual ele é constituído e a qual constitui. Isso é suicídio. Esse mesmo ser humano que há muito se entende como racional, pois é capaz de pensar e encontrar as melhores soluções tem de se dar conta que as sensibilidades, o sentimento de cuidado e de pertença, a própria fé que cuida e preserva, são válidos e devem ser levados em conta, do contrário caminharemos cada vez mais para perto do precipício e na queda, é certo o fim.

Porto Alegre - RS, 2007.

Publicada no livro:
"Crônicas à Beira do Caos" da Câmara Brasileira de Jovens Escritores. Rio de Janeiro: CBJE e BrLetras, 2007.